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sábado, 14 de outubro de 2017

A CONCEPÇÃO DE THOMAS KUHN ACERCA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS


1.   Introdução

Kuhn, em sua obra principal intitulada Estrutura das Revoluções Científicas2 (1962), procura dar ênfase ao caráter total das revoluções científicas que produzem mudanças a nível metodológico, ontológico e semântico, gerando, desta forma, uma incomensurabilidade global entre tradições paradigmáticas.Mas Kuhn também admite que as revoluções científicas produzem a substituição parcial de um paradigma e ocasionam uma incomensurabilidade local. Tais ideias não são elucidadas nessa obra, e só iremos compreendê-las em seus pós-escritos. Assim, neste primeiro momento, pretendemos esclarecer quando uma revolução provoca uma mudança total ou parcial de um paradigma e, também, o tipo de incomensurabilidade que ela produz.Em segundo lugar, apresentaremos as críticas à concepção de revolução científica de Kuhn. Dentre elas destacaremos as acusações de irracionalismo e relativismo, consideradas como as que mais influenciaram o autor na reformulação de sua concepção original acerca das revoluções científicas.Em terceiro lugar, mostraremos no artigo O que são revoluções científicas? (1987), do próprio autor, como ele concebe o seu novo conceito de revolução científica3, após reformulá-lo em face às críticas que sua concepção original sofreu. Consideraremos que esta nova maneira de conceber as revoluções é menos radical que a anterior, na medida em que privilegia apenas a perspectiva semântica, o que se configura como uma mudança parcial entre paradigmas. E será esta nova concepção de revolução que ele passará a adotar nos seus escritos pós-Estrutura.Em nossa análise pontuamos que ao reformular sua concepção acerca das revoluções científicas, substituindo a ideia de uma mudança total entre tradições paradigmáticas rivais, na qual há uma incomensurabilidade metodológica, ontológica e semântica que as separa por uma mudança parcial, na qual ocorre apenas uma incomensurabilidade semântica entre elas, Kuhn não abandona os outros dois aspectos envolvidos na mudança paradigmática, mas os integra na incomensurabilidade semântica.

2.    A concepção de revolução científica na Estrutura


Na Estrutura, Thomas Kuhn nos apresenta, sob uma perspectiva histórica, como ocorre a evolução de uma ciência até atingir sua maturidade. Para ele, a ciência passa, no decorrer de seu desenvolvimento, por estágios sucessivos, que são ora cumulativos (mudança intraparadigmática) ora não cumulativos (mudança interparadigmática). Estes últimos se caracterizam pela substituição de um paradigma por outro, através de uma revolução. É sobre esse último tipo de mudança que será dado ênfase deste trabalho. Mas, para que fique claro o que ocorre durante uma revolução científica, faz-se necessário esclarecermos, brevemente, os estágios característicos do desenvolvimento de uma ciência, que são: o pré-paradigmático e o paradigmático; estes últimos são intercalados por períodos em que ocorre uma revolução científica.No período pré-paradigmático várias escolas ou grupos disputam entre si qual deles estabelecerá os fundamentos para nortear as pesquisas de um campo de estudo. Estas disputas se resolvem por meio da persuasão e geram o consenso e o comprometimento com um único paradigma4, que passa a direcionar as pesquisas desse campo. A ciência atinge, assim, seu estágio paradigmático ou de maturidade, no qual os cientistas dedicam suas pesquisas a precisar, articular e aplicar o paradigma na explicação de novos fatos ou na resolução de novos problemas. A pesquisa realizada nesse estágio é a de Ciência Normal. Como resultado das pesquisas nesse período, temos um progresso intraparadigmático, que produz o aprofundamento e a ampliação do paradigma.
Contudo, no decorrer da pesquisa de Ciência Normal, os cientistas se deparam com problemas que resistem à abordagem dada pelo paradigma, que são as anomalias. Com isso, a comunidade científica questiona-se sobre as bases de seu campo de estudo, ocasionando uma crise.Uma crise divide a pesquisa científica em dois grupos, os cientistas que tratam a anomalia como um problema de Ciência Normal tentando resolvê-la a luz do paradigma vigente, para isso eles “[…] conceberão numerosas articulações e modificações ad hoc de sua teoria [...]” (KUHN, 2011, p.108) e os que buscam dar uma nova abordagem ao problema; estes praticam o que Kuhn denomina de Ciência Extraordinária, procurando descobrir um novo paradigma.A crise5 pode terminar com a descoberta de um novo paradigma para solucionara anomalia. Com isso, cria-se uma disputa entre tradições paradigmáticas rivais. Se os adeptos da nova forma de resolução do problema conseguirem convencer os defensores do antigo paradigma, por meio da persuasão, de que sua proposta é mais promissora para nortear a prática científica que a antiga, então ocorre uma revolução científica.
Kuhn, em sua obra Estrutura, define as revoluções como “[…] aqueles episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo incompatível com o anterior” (KUHN, 2011, p. 125). Assim, quando ocorre uma revolução, há uma substituição de uma tradição paradigmática por outra, que pode ocorrer de uma forma total ou parcial.Muito embora Kuhn admita que uma revolução possa provocar uma mudança parcial entre paradigmas, ele não deixa muito claro como se dá essa mudança. Compreenderemos melhor este tipo de mudança quando analisarmos o seu artigo O que são revoluções científicas? (1987). A ênfase dada por ele na Estrutura é a revolução  que provoca uma substituição total entre paradigmas rivais, havendo entre elas uma incomensurabilidade.
Ao definir as tradições paradigmáticas como incomensuráveis, Kuhn quer deixar claro que há entre elas uma certa incompatibilidade6. Isso ocorre, porque cada tradição paradigmática elege os problemas que considera mais relevantes, utiliza os instrumentos científicos com objetivos diferentes, atribui significados específicos para os conceitos das teorias e percebe o mundo de formas distintas. Esses aspectos envolvidos na incomensurabilidade entre tradições paradigmáticas rivais foram classificados pelos estudiosos da obra de Kuhn em três tipos: metodológica, ontológica e semântica. (GATTEI, 2008, p.102), caracterizando, assim, tal incomensurabilidade como total.A incomensurabilidade metodológica ocorre quando dois paradigmas divergem na definição dos problemas relevantes, nos modelos de resolução de problemas e nos métodos e técnicas a serem utilizados nas pesquisas.Um exemplo que nos mostra essas mudanças dos pontos apontados acima nos padrões da pesquisa científica pode ser ilustrado pelo que ocorreu na química quando houve a substituição do paradigma do flogisto pelo de Lavosier. Neste caso, uma determinada substância passou a ser classificada de outra forma: o ar puro passou a ser concebido como oxigênio. Podemos dizer, de maneira mais sucinta, que ocorreu uma alteração na classificação dos fenômenos mais importantes a serem estudados.
A incomensurabilidade ontológica é a que Kuhn analisa mais detalhadamente por se tratar da forma como os cientistas percebem o mundo7. Para o filósofo, “[…] por exercerem sua profissão em mundos diferentes, os dois grupos de cientistas veem coisas diferentes quando olham de um mesmo ponto para a mesma direção” (KUHN, 2011, p. 192). Dessa forma, quando cientistas, com paradigmas diferentes, olham o mesmo fenômeno, observam coisas distintas.Podemos dizer que o paradigma determina o que cientista classificará como mais relevante antes da experiência com o mundo externo. Sendo assim, ele já tem pressuposto para onde deve direcionar o seu olhar. Para esclarecer o direcionamento no olhar do cientista dado pelo paradigma, o filósofo nos apresenta como analogia a imagem da Gestalt do pato-coelho, na qual uma tradição paradigmática ensinaria seus praticantes a “verem” na imagem o coelho, enquanto a outra o pato.
A incomensurabilidade semântica diz respeito à divergência quanto ao significado dos conceitos, empregados por comunidades científicas, que são norteadas por paradigmas diferentes. Em outras palavras, “[…] dentro do novo paradigma, termos, conceitos e experiências antigos estabelecem novas relações entre si” (KUHN, 2011, p. 191).Kuhn procura ilustrar tal ideia através da diferença semântica do termo “terra” nas tradições paradigmáticas de Copérnico e Ptolomeu. Enquanto que para a tradição copernicana ela é apenas mais um planeta no sistema solar – e este é só mais um sistema dentre muitos –, para a ptolomaica a terra é vista como o centro do universo, em torno da qual todos os astros deveriam girar ao seu redor. Com isso, o que determina o sentido de um termo é a estrutura (paradigma) na qual ele está inserido, isto é, apesar do termo não mudar, as significações são distintas.Ao apresentar a sua tese de incomensurabilidade entre tradições paradigmáticas na Estrutura, Kuhn dá igual importância aos três aspectos que ela abarca, muito embora não expresse claramente essa ideia. Mas, ao analisarmos os exemplos de revoluções científicas apresentados por ele nessa obra, percebemos que as revoluções envolvem uma incomensurabilidade total, isto é, elas provocam mudanças nos aspectos metodológico, semântico e ontológico; e ele atribui igual valor a cada um deles.Tal posição fica clara no exemplo de revolução que ocorreu na química, com John Dalton, pois Kuhn procura mostrar que ali ocorreram mudanças nos aspectos metodológicos, ontológicos e semânticos e que todos eles foram relevantes para que ocorresse a mudança de paradigma. No plano semântico ele diz que:

[…] os químicos deixaram de escrever que os dois óxidos de, por exemplo, carbono, continham 56 por cento de 72 por centro de oxigênio por peso; em lugar disso, passaram a escrever que um peso de carbono combinar-se-ia ou com 1,13 ou com 2,6 pesos de oxigênio (KUHN, 2011, p.173).

Percebe-se, assim, que após a descoberta de Dalton ocorreu uma mudança na maneira dos cientistas descreverem os fenômenos. Em relação à mudança na metodologia, tal revolução tornou possível “[…] novas experiências, especialmente as de Gay-Lussac sobre a combinação dos volumes, [...] com as quais os cientistas nunca haviam sonhado” (KUHN, 2011, p.173), mudando assim, a maneira como os cientistas praticam a ciência. Por fim, no que diz respeito ao aspecto ontológico, após a substituição do antigo paradigma, os cientistas passaram “[…] a viver em um mundo no qual as reações químicas se comportavam de maneira bem diversa do que tinham feito anteriormente” (KUHN, 2011, p.173).

3.    As críticas de Popper e Lakatos

A concepção de revolução científica de Kuhn que nos é apresentada na Estrutura foi criticada pelos filósofos da ciência, dentre eles se destacam Imre Lakatos e Karl Popper. O primeiro, em seu artigo Falsificação e metodologia dos Programas de Investigação Científica (1978), considera que a concepção de revolução científica de Kuhn é irracional, visto que:

Não existe qualquer causa racional particular para o aparecimento de uma “crise” kuhniana. “Crise” é um conceito psicológico; é um pânico contagioso. Em seguida, emerge um novo “paradigma”, não comparável com o seu antecessor. Não existem padrões racionais que permitam sua comparação. [...] [e também] Não existem padrões supra-paradigmáticos. [...] Portanto, do ponto de vista de Kuhn, a revolução científica é irracional [...] (LAKATOS, 1978, p. 104-105).

No processo de escolha entre paradigmas rivais, estes não podem ser comparados por causa da incomensurabilidade; é sobre este ponto que Lakatos desfere sua crítica. Segundo o filósofo, não existe um fio condutor entre ciência antes e depois da revolução científica. Ele diz que se não há padrões racionais que possam comparar as tradições paradigmáticas rivais, então as revoluções, tal como são concebidas na Estrutura, são irracionais.Outro filósofo que criticou a concepção de revolução científica de Kuhn, acusando-a de relativista, foi Karl Popper na obra “O mito do contexto” (1976). Diz ele que para que possamos dizer de duas teorias, que se relacionam com os mesmos problemas, que uma é melhor que a outra – que houve progresso científico –, elas tem que poder ser comparadas. Contudo, como mostramos acima, o conceito de incomensurabilidade não possibilita, na concepção de Kuhn, esta comparação. Vejamos nas palavras de Popper a sua principal tese:

Defendo que este tipo de comparação entre sistemas que historicamente tiveram origem nos mesmos problemas (digamos explicar o movimento dos corpos celestes) é sempre possível. Teorias que oferecem soluções dos mesmos problemas ou de problemas estreitamente relacionados com estes, são, em regra, comparáveis e as discussões entre eles são sempre possíveis e proveitosas. E são não só possíveis como, de facto, ocorrem (sic) (POPPER, 2009, p.79).

Esse posicionamento ataca o cerne da teoria da incomensurabilidade de Kuhn que aponta para o fato de que paradigmas – ou teorias – diferentes são incomensuráveis em três níveis: ontológico, metodológico e semântico, não sendo, consequentemente, possível a comparação entre elas.Na obra supracitada, Popper afirma que embora exista um deslocamento de Gelstalt de uma teoria para outra, no plano lógico – que para ele é o mais relevante – podemos compará-las, através do método da tradução de linguagem entre paradigmas, e, assim, anular o relativismo.Para livrar-se das críticas de irracionalismo e relativismo, Kuhn reformulou sua concepção de incomensurabilidade e, consequentemente, de revolução científica. Vejamos, então, como ocorreu essa reformulação na seção seguinte.

4.    A concepção de revolução científica no artigo pós-Estrutura


No seu artigo O que são revoluções científicas? (1987), Kuhn reformula sua concepção original de revoluções científicas. Ele passa a entender as revoluções como substituição de um paradigma por outro, que geram uma incomensurabilidade apenas no
aspecto semântico. Tal forma de conceber as revoluções difere da apresentada na Estrutura, que ocasionava uma incomensurabilidade total entre as tradições paradigmáticas.No referido artigo, as revoluções científicas são entendidas como “[…] descobertas que não podem ser acomodadas nos limites dos conceitos que estavam em uso antes de elas terem sido feitas” (KUHN, 2003, p. 25). Kuhn quer dizer que as revoluções científicas, que conduzem a substituição de paradigmas, provocam uma mudança de caráter semântico, tendo como principal característica a divergência nas significações dos conceitos que eram utilizados pelos cientistas. O filósofo apresenta, nesse sentido, três características principais que nos ajudam a compreender melhor a natureza dessas revoluções, são elas: o holismo, a mudança referencial e a realocação das categorias taxonômicas.
A primeira característica é explicada nos seguintes termos: “[…] as mudanças revolucionárias são, de uma certa forma, holísticas. Isto é, elas não podem ser feitas gradualmente, um passo de cada vez” (KUHN, 2003, p. 41). Nesse aspecto, Kuhn se opõe aos teóricos da Filosofia da Ciência que concebiam a escolha de teorias rivais através de critérios lógico-metodológicos, no qual o teste é feito passo a passo. Para ele, os valores individuais e da comunidade científica são os mais determinantes na decisão entre tradições paradigmáticas. Sendo assim, a substituição de paradigma não segue um padrão sistemático – como parâmetro-base –; ela deve ser experimentada como uma mudança súbita.A segunda característica se refere à “[…] mudança na maneira por que as palavras e expressões se ligam à natureza, uma mudança na maneira por que são determinados seus referentes” (KUHN, 2003, p. 42). Este caráter corresponde ao que na Estrutura era visto como mudança de significação ou de referencial, pois neste também há uma alteração na forma como ocorre a conexão dos signos linguísticos com o mundo. Assim, podemos dizer que este aspecto da nova concepção de revolução científica apresentado no pós-escrito é equivalente à incomensurabilidade semântica que nos é mostrada na obra principal de Kuhn. E como terceira característica da nova concepção de revolução científica, temos a realocação dos termos em padrões de similaridade ou em categorias taxonômicas. Esta característica é apresentada por Kuhn como sendo a mais significativa nesta definição, isto porque, para ele, “[…] o que caracteriza as [novas] revoluções, assim, é a mudança em várias das categorias taxonômicas que são pré-requisitos para descrições generalizações científicas” (KUHN, 2003, p. 42). Para ilustrar esta característica, o autor utiliza como exemplo a compreensão do fenômeno “movimento” no âmbito da física aristotélica e da moderna8, isto é, estes dois paradigmas têm categorias taxonômicas diferentes, pois enquanto que a primeira entende como movimento todo tipo de mudança9, a segunda só atribui esse nome ao deslocamento de posição.Após analisarmos as duas concepções de revolução científica, percebemos que a forma como a incomensurabilidade se apresenta em ambas define a principal diferença entre elas, pois na concepção da Estrutura os três níveis de incomensurabilidade tem igual importância, enquanto que no pós-escrito o aspecto que o autor privilegia é o semântico.
Outro aspecto que denota a diferença na forma de tratar as revoluções científicas e a incomensurabilidade, em seu pós-escrito, diz respeito aos exemplos utilizados por Kuhn que são diferentes dos da antiga concepção.Na Estrutura os três aspectos de incomensurabilidades têm a mesma relevância, como foi mostrado no exemplo da revolução de Dalton na Química. No artigo do pós- escrito, isso não ocorre, visto que neste é dado uma maior relevância para o aspecto semântico. E, o exemplo que Kuhn utiliza para ilustrar essa sua nova concepção é o da Física Quântica de Max Planck, que ele caracteriza como tendo ocorrido uma mudança semântica ou de referencial. Tal posição nos mostra que a revolução agora é entendida apenas em termos linguísticos, ou seja, no que diz respeito à maneira como os termos se ligam à natureza, pois nessa mudança ocorreu apenas a substituição do termo “ressoadores” (acústica) por “osciladores” para que a expressão torne a teoria mais precisa.

5.     Considerações finais


Como vimos, Thomas Kuhn nos apresenta na Estrutura (1962) e em seu pós- escrito O que são revoluções científicas (1987) duas formas de conceber as revoluções científicas. Nesta conclusão gostaríamos de deixar claras as diferenças entre as duas concepções e o que elas têm em comum.A principal diferença entre elas está na forma de tratar as revoluções científicas e, consequentemente, a incomensurabilidade entre tradições paradigmáticas – por se tratar de um conceito intimamente relacionado com as revoluções. Podemos observar isso nas características das duas concepções, pois enquanto que na Estrutura a revolução apresenta-se como uma substituição total entre paradigmas gerando incomensurabilidade nos níveis metodológicos, ontológicos e semânticos, a do pós- escrito é mais sutil, de difícil percepção, isto porque se dá apenas parcialmente, no nível semântico, como uma mudança de significado dos termos.Tendo por base essa diferenciação, fica claro porque Kuhn afirma, mas não esclarece na Estrutura, que as revoluções científicas são “[…] episódios de desenvolvimento não cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior” (KUHN, 2011, p. 125). 
No nosso entender, quando o autor diz que as revoluções são totais, ele refere-se àquelas que ocasionam incomensurabilidade nos três aspectos entre tradições paradigmáticas. Já quando considera as revoluções como parciais, ele está dizendo que a substituição provocou mudança apenas em nível semântico.Assim como as diferenças, as semelhanças das concepções estão também nas suas características de incomensurabilidade, pois como demonstramos, os níveis ontológicos e metodológicos da antiga concepção foram integrados na nova. Sendo assim, grande parte dos aspectos característicos da revolução científica que se apresentam na  Estrutura estão presentes na nova concepção que se apresenta no pós-escrito, mas, como vimos, com relevância diferente. Na primeira, os três aspectos da incomensurabilidade tem a mesma importância, enquanto que na segunda, o aspecto semântico acaba sendo privilegiado em detrimentos dos outros que aparecem apenas como integrando este.
Nosso apontamento no início do artigo é o de que os aspectos metodológico e ontológico não são abandonados por Kuhn em sua nova concepção de revolução científica, mas apenas recebem menor relevância, vejamos então como isso se dá.O aspecto metodológico da incomensurabilidade integra a nova concepção de revolução científica na segunda característica de revolução (do pós-escrito), que é a de mudança de categorias taxonômicas, pois junto com elas mudam também os problemas, a metodologia e todos os exemplares. Tais mudanças podem ser identificadas com umdos aspectos apresentados na primeira concepção – o de que paradigmas diferentes têm metodologias incomensuráveis.Ao identificarmos que este aspecto da incomensurabilidade está incluso na nova concepção de revolução, também observamos que não é dado a ele a mesma importância que tinha na substituição paradigmática da Estrutura. Para que tal mudança ocorra faz-se necessário que mudem as categorias taxonômicas, e essas são parte do aspecto semântico, que é o privilegiado por Kuhn.No que diz respeito ao aspecto ontológico da incomensurabilidade podemos percebê-lo como integrando a concepção semântica de revolução em uma passagem do artigo mencionado acima, na qual o Kuhn afirma que:

Em boa parte do aprendizado da linguagem, esses dois tipos de conhecimento – conhecimento das palavras e conhecimento da natureza – são adquiridos em conjunto; na realidade, não dois tipos de conhecimento, mas as duas faces da moeda única que uma linguagem fornece (KUHN, 2003, p. 44).

Assim “conhecimento das palavras” e “conhecimento da natureza” fazem parte do mesmo tipo de aprendizagem que são fornecidos por uma linguagem. Com isso, o aspecto ontológico subordina-se ao âmbito do nível semântico, pois não tem a mesma relevância que tinha na Estrutura, dado que ele é apenas uma consequência que está integrada na mudança de significação.Mas se as reformulações da concepção de revolução científica ocorreram por causa das críticas, então a pergunta que temos de responder é: a nova concepção de revolução científica conseguiu resolver os problemas de irracionalismo e relativismo apontado pelos críticos?
Em nosso entendimento a nova concepção de Kuhn conseguiu solucionar os problemas relacionados com a acusação de irracionalismo, pois ao determinar que o principal caráter da revolução é a mudança semântica ou referencial, o autor consegue estabelecer uma forma de comunicação entre paradigmas diferentes e a consequente tradução de linguagem entre paradigmas. Ela permite que tradições paradigmáticas diferentes possam colocar em termos com as significações de seu paradigma o que a outra comunidade científica está tentando dizer. Com isso, cria-se um fio condutor entre as duas concepções, o que possibilita comparar quem tem o melhor apuramento teórico, dando uma base racional às revoluções científicas.
Por fim, entendemos que a reformulação feita por Thomas Kuhn em sua teoria da ciência, também conseguiu livrá-lo das críticas de relativismo. Afirmamos isso com base no seguinte raciocínio: a principal tese de Karl Popper é, como vimos, a de que se não há progresso científico, então não podermos comparar teorias (e se pode perceber esta característica na concepção do filósofo americano através do conceito de incomensurabilidade); conclui, assim, Popper que, para Kuhn, em cada período de tempo em que há uma teoria dominante (paradigma), deve-se ter uma verdade diferente, sendo tal posição considerada como relativista. Kuhn, ao reformular sua teoria, encontra uma forma de contornar essa crítica, pois como na definição de revolução científica do escrito pós-Estrutura o aspecto semântico da incomensurabilidade é o que recebe mais relevância e caracteriza as revoluções, então o filósofo adquiriu uma forma de poder comparar teorias, a da tradução de linguagens entre paradigmas. Através desse artifício é possível comparar teorias científicas e dizer se uma é melhor que a outra; isto possibilita dizer que há progresso científico na teoria do autor.


 Notas

4 Seguimos aqui as definições dadas por Kuhn ao termo paradigma de seu posfácio de 1969. Neste, o autor nos apresenta dois sentidos deste termo: “[o primeiro] indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhadas pelos membros de uma comunidade científica. [...] [o segundo] denota um tipo de elemento dessa constelação: as soluções concretas de quebra-cabeças que, empregadas como modelos ou exemplos, podem substituir regras explícitas como base para a solução dos restantes quebra-cabeças da Ciência Normal” (KUHN, 2011, p. 220).
5 O fim de uma crise paradigmática pode se dar de três formas (Cf. KUHN, 2011, p. 115-16). Contudo, focaremos apenas no término que desemboca em uma revolução científica.
6 Na definição de revolução científica da Estrutura a incomensurabilidade pode ser entendida como incompatibilidade na medida em que impossibilita a comparação entre paradigmas diferentes. Contudo, ao reformular a concepção de revolução, Kuhn não utiliza mais este termo para descrever este conceito, pois a tradução entre tradições paradigmáticas torna possível a comunicação entre elas.
7 Kuhn diz também que se considerarmos que o único acesso que os cientistas têm a esse mundo é através do que eles veem e fazem, então podemos dizer que após uma revolução científica o próprio mundo do praticante da ciência muda.
8 O exemplo de mudança de categorias taxonômicas aparece no texto O que são revoluções científicas?
Essa característica é mostrada de modo sintético nas p. 43-44.
9 Segue a citação: “Quando o termo ‘movimento’ ocorre na física aristotélica, ele se refere à mudança em geral, não apenas à mudança de posição de um corpo físico. A mudança de posição, o tópico exclusivo da mecânica para Galileu e Newton, é para Aristóteles uma entre várias subcategorias do movimento. Outras incluem crescimento (a transformação de uma bolota em um carvalho), alterações de intensidade (o aquecimento de uma barra de ferro), e várias mudanças qualitativas mais gerais (a transição da doença à saúde)” (KUHN, 2006, p. 28).


Referências

KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções científicas. 11ª Edição, São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.
            . O caminho desde A Estrutura: Ensaios filosóficos, 1970-1993, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
            . “O que são revoluções científicas?”. In KUHN, T. S. O caminho desde A Estrutura: Ensaios filosóficos, 1970-1993, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 23-45.
            . “Comensurabilidade, comparabilidade, comunicabilidade”. In: KUHN, T. S.
O caminho desde a estrutura. São Paulo: Editora Unesp, 2006, p. 47-76. LAKATOS, I. Falsificação e metodologia dos programas de investigação científica.
Lisboa-Portugal: Edições 70 (Biblioteca de filosofia contemporânea), 1978, p.104-107. LAKATOS, I. & MUSGRAVE, A. (Org.) A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979, p.5-31, 63-71.
POPPER, K. O mito do Contexto. Lisboa: Edições 70, 2009.
            . “O mito do Contexto” In POPPER, Karl. O mito do Contexto. Lisboa: Edições 70, 2009.
STEGMÜLLER, W. A Filosofia Contemporânea: introdução crítica. São Paulo, EPU, Ed. da Universidade de São Paulo, 1977, p.353- 391.

Credito de: Luiz Pedro da Silva Seabra.