A
obra de Galileu Galilei (1564-1642) está intimamente ligada à revolução
científica do século XVII, talvez uma das mais profundas revoluções sofridas
pelo espírito humano, que implicou uma mudança intelectual radical, cujo
produto e expressão mais genuína foi o nascimento da ciência moderna. Dentro
desse quadro, Galileu é universalmente considerado o fundador da física
clássica, que passará a ser desenvolvida na direção de uma teoria físico matemática
dos fenômenos naturais. Suas contribuições substantivas para essa nova ciência,
a saber, a descoberta da lei de queda dos corpos, a formulação da teoria do
movimento uniformemente acelerado e a descoberta da trajetória parabólica dos
projéteis, justificam plenamente o veredicto. A contribuição de Galileu constitui-se,
sem dúvida, na elaboração da primeira teoria cinemática que consegue descrever
matematicamente o movimento dos corpos físicos (cf. GALILEI, 1988 [1638],
Terceira e Quarta Jornadas).
A constituição da cinemática será
fundamental para o entendimento mais profundo do movimento e de seu papel nos
eventos naturais, em suma, para o desenvolvimento e a consolidação da dinâmica.
E Galileu não deixou de dar passos importantes nessa direção, com suas
discussões sobre a extrusão causada pela rotação terrestre (cf. GALILEI, 2004
[1632], p. 214-44; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 6) ou com seu princípio
único da teoria do movimento que contém implícita a idéia de conservação de
energia (cf. GALILEI, 1988 [1638], p. 167-9; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap.
7) ou ainda com sua teoria dinâmica das marés (cf. GALILEI, 2004 [1632], Quarta
Jornada; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, Cap. 6; MARICONDA, 1999). Também é comum
considerar Galileu um dos fundadores do método experimental, apesar da imensa
oposição levantada por Koyré em sua influente e sedutora interpretação de um
Galileu platônico, operando matematicamente a priori (cf. KOYRÉ, 1978a; 1978b)1
.
Deste ponto de vista, não são apenas as
realizações estritamente científicas que contam como contribuições de Galileu à
posteridade, mas também sua maneira de conceber a ciência física, o método
científico e, principalmente, a maneira pela qual chegou aos resultados
científicos. Em resumo, o que caracteriza a atitude científica galileana e
também a atitude científica moderna - é a procura, na natureza, de
regularidades matematicamente expressáveis, as chamadas leis da natureza, e o
método de certificar-se de sua verdade através da realização de experimentos. O
principal exemplo apresentado nesse sentido é a própria lei de queda dos corpos
que Galileu confirma por meio da realização de experimentos com o plano
inclinado (cf. GALILEI, 1988 [1638], p. 175-6; MARICONDA; VASCONCELOS, 2006,
Cap. 2). Com o intuito de avaliar essas duas afirmações sobre o alcance da obra
de Galileu, apresento, a seguir, algumas considerações no sentido de
contextualizar historicamente as atribuições de fundação da física clássica e
do método experimental, de modo a revelar o alcance intelectual e
sócio-institucional da atividade científica do grande pisano.
2. A ATITUDE ATIVA E OS INSTRUMENTOS
CIENTÍFICOS
É
comum caracterizar a revolução científica do século XVII como uma transformação
completa da atitude fundamental do espírito humano. Essa transformação está
expressa na oposição entre uma atitude ativa e uma atitude contemplativa: o
homem moderno procura dominar a natureza, tornar-se “dono e senhor da
natureza”, enquanto o homem medieval visa apenas contemplá-la. Embora não se
deva tomar tal caracterização em sentido absoluto, pois poderia conduzir, de um
lado, a minimizar as realizações técnicas da Idade Média e, de outro, a
maximizar a influência da técnica no desenvolvimento científico dos séculos XVI
e XVII, não deixa de ser verdade que a filosofia, a ética e as religiões
modernas enfatizam a ação, a praxis, muito mais do que o faziam o pensamento
antigo e medieval.
A tendência a uma atitude ativa está
particularmente exemplificada em Galileu por seu interesse no desenvolvimento
de instrumentos científicos. Logo no início de sua carreira científica, no
biênio 1586/87, esse interesse está presente na invenção da balança
hidrostática (GALILEI, 1929; 1986). Trata-se, na verdade, de um instrumento
destinado a resolver o problema prático de medição de uma grandeza física: o
peso específico dos materiais, tal como definido pelo divino Arquimedes em seu
tratado Dos corpos flutuantes. Essa preocupação com o aspecto prático da
ciência manteve-se durante os treze anos seguintes; primeiro, numa direção
eminentemente técnica com o compasso geométrico-militar e, a partir de 1609, em
uma direção claramente científica com o telescópio. Detenhamo-nos um pouco
nesses dois instrumentos. O primeiro é, sem dúvida, notável e característico da
mentalidade ativa. Galileu inventou um compasso, que é também uma régua de
cálculo que permite cômputos rápidos e variados de distâncias, de
profundidades, de altitudes, de espessuras de muralhas e resistência de vigas,
muros de arrimo e sustentação etc.
O compasso, fabricado na oficina de
Galileu em Pádua, era vendido, juntamente com um manual (para uso do
instrumento) intitulado Le operazioni del compasso geométrico et militare
(GALILEI, 1932 [1606]), publicado em Florença. Vender um instrumento com o
respectivo manual de uso é certamente uma novidade, principalmente porque
reflete uma atitude ativa e interessada na utilidade. Quanto ao segundo
instrumento, embora definitivamente Galileu não tenha sido o inventor do
telescópio, foi, entretanto, o primeiro a aperfeiçoá-lo e utilizá-lo em
observações astronômicas sistemáticas e contínuas, dando assim a um aparelho
que despertava muita curiosidade na época e cujo valor militar foi
imediatamente reconhecido (o próprio Galileu o venderá por essa utilidade à
Sereníssima República de Veneza) uma aplicabilidade científica de inestimável
valor para a astronomia e para a ciência em geral (cf. MARICONDA; VASCONCELOS,
p. 71-4).
É verdade que Galileu não enfrentou os
problemas teóricos levantados pelo uso do telescópio; em particular, não se
interessou pela teoria óptica que explicava o funcionamento do telescópio,
embora essa teoria já se encontrasse, em parte, nas obras do italiano Giovanni
Battista Della Porta, Magia naturalis de 1589 e De refractione de 1593,3 e, de
modo completo, nas obras de Johannes Kepler, Ad Vitelionem paralipomena, de
1604, na qual apresenta uma explicação exata da propriedade das lentes, e
Diottrica, de 1611, na qual Kepler expõe a teoria completa do telescópio. Mas
essa falta de interesse na teoria óptica não retira de Galileu todo o mérito,
pois a necessidade de entender o funcionamento de um instrumento e a
importância da teoria que explica a confiabilidade desse instrumento nascem do
uso efetivo e da utilidade demonstrada do instrumento. Galileu foi, certamente,
quem mostrou a indiscutível utilidade científica do telescópio, realizando suas
famosas observações astronômicas, anunciadas no Sidereus nuncius, de 1610
(GALILEI, 1930 [1610]; 1987 [1610]). Galileu realizou durante mais de vinte
anos, do final de 1609 até a publicação do Diálogo, em 1632, vários conjuntos
de observações telescópicas sistemáticas e contínuas, por exemplo, sobre as
fases de Vênus, sobre os satélites de Júpiter, sobre os anéis de Saturno, sobre
as manchas solares etc. Dentre esses conjuntos, as observações mais
extraordinárias são aquelas sobre as manchas solares (cf. CLAVELIN, 1996, Cap.
4; MARICONDA, 2000, p. 83-5), acerca das quais Galileu publicaria, em 1613, o “Istoria e dimostrazioni intorno alle
macchie Solari”, obra na qual recolhe suas três cartas em resposta às
visões tradicionalistas do jesuíta Scheiner (GALILEI, 1932 [1613]).
É
inegável que a prática da observação telescópica contribuiu para abrir as
portas ao conhecimento do sistema solar e do universo e, em outro plano, para o
desenvolvimento de uma atitude de observação controlada e sistemática realizada
por meio de e através de aparelhos, de aparatos instrumentais, desenhados
especificamente para fins científicos. Com efeito, a pesquisa telescópica de
Galileu não influiu apenas no domínio do macrocosmo, onde reconhecidamente
abriu a possibilidade de uma nova cosmologia, mas desencadeou o início da
pesquisa microscópica tanto na direção do aperfeiçoamento do aparelho, o
microscópio, como no desenvolvimento do conhecimento observacional sobre o
microcosmo. Não se trata, evidentemente, de dizer que Galileu tenha contribuído
diretamente para a microscopia, mas basicamente de assinalar o nascimento de um
novo estilo científico que combina matemática e experiência ou, como no caso de
Galileu, geometria e experimentos, ou numa formulação mais clara, opera com
experiências construídas pela razão (cf. MARICONDA; VASCONCELOS, p. 42-52, p.
66-74).
Galileu investigou também os fenômenos
térmicos, inventando um aparelho para a medida da temperatura. Contudo, não se
pode dizer que tenha inventado o termômetro, pois seu aparelho apresentava
muitos defeitos: o nível do líquido no tubo em que devia ser feita a leitura da
temperatura dependia, na verdade, não apenas da temperatura procurada, mas
também da pressão atmosférica externa. Apesar disso, a tentativa de Galileu é
considerada como o embrião a partir do qual Torricelli, um dos últimos
discípulos de Galileu, chegou à invenção do barômetro (cf. DIJKSTERHUIS, 1986,
p. 359-64). Mesmo no final de sua vida, Galileu procurou construir, sem êxito,
um relógio de pêndulo que fornecesse uma medida exata do tempo. Essas
tentativas, apesar de mal sucedidas, mostram claramente a consciência que
Galileu tinha da importância, para a física clássica, dos instrumentos de
medida, isto é, de apare-lhos técnicos, de artefatos que permitissem
observações e medições cada vez mais precisas.
Pouco tempo depois, Christian Huygens
resolveria o problema técnico (mecânico) de compensar com um novo impulso a
perda de movimento do pêndulo em virtude da resistência do meio construindo o
primeiro relógio de pêndulo (cf. DIJKSTERHUIS, 1986, p. 368-79). Podemos
concluir, portanto, que o empenho de Galileu na descoberta, aperfeiçoamento e
uso de instrumentos de medida e de observação – que é uma marca característica
(1) da aplicação do método experimental ao estudo dos fenômenos naturais e (2)
da íntima relação entre ciência e técnica – esteve presente em toda sua
carreira científica, e justifica, em grande parte, a afirmação de que ele é um
dos fundadores do método experimental.
3. A UNIÃO ENTRE
CIÊNCIA E TÉCNICA
Há outro aspecto de extrema relevância
ligado à mudança de atitude característica da revolução científica dos séculos
XVI e XVII. A atitude contemplativa estava assentada, em grande medida, na
distinção estrita operada pelos gregos e mantida pelos medievais entre episteme
(ciência) e techne (técnica). Segundo essa distinção, à episteme correspondia o
mais elevado grau de conhecimento certo, necessário e demonstrável, ou seja,
ciência apodítica ou ciência em sentido estrito, enquanto à techne correspondia
o conhecimento prático, o saber fazer, as artes e as técnicas em geral.Por
outro lado, essa separação entre ciência e técnica estava associada a uma
hierarquia valorativa, segundo a qual o primeiro tipo de atividade era
considerado nitidamente superior ao segundo. A completa independência entre os
dois tipos de atividade acabaria por tornar a ciência uma atividade basicamente
teórica, isenta de preocupação e interesse com as conseqüências práticas e
técnicas. Concebida desse modo, a ciência acabou por ser confundida com uma
atividade que envolvia extensas controvérsias teóricas sobre a interpretação de
textos tradicionais, principalmente dos textos aristotélicos.
É nessa linha que se fixou, afinal de
contas, desde o início da fundação das universidades, no século XII, a
importância do autor e a idéia da autoridade com seu sentido originário de que
existem certos autores, as autoridades, que se sobressaem e predominam sobre os
outros. É natural que essa valoração da contemplação e a conseqüente separação
entre a ciência e a prática estivessem profundamente enraizadas na organização
institucional do conhecimento nos séculos XVI e XVII. De um lado, havia a
tradição científica e filosófica que a Igreja mantinha e ensinava nas
universidades; de outro lado, o ensino técnico que era desenvolvido
independentemente da tradição das universidades, primeiro, durante a Idade
Média, nas escolas de artesãos e, depois, nas famosas escolas de artistas e nos
arsenais do Renascimento e da primeira modernidade. Na organização educacional
universitária, a física aristotélica constituía a introdução sistemática à
enciclopédia científica tradicional, pois considerava-se que era a única que podia
oferecer ao conteúdo científico, em si mesmo fragmentário, unidade e coerência
teórica.
Por outro lado, a física aristotélica
repousa sobre a metafísica, isto é, sobre o sistema de conceitos e de relações
universais no qual a infinita variedade e a aparente acidentalidade da
existência deixam transparecer uma profunda unidade teleológica de um cosmo
(universo) bem ordenado, ou seja, a unidade do cosmo é teleológica porque a
“ordem perfeita” do cosmo é uma finalidade que guia de modo determinado o curso
dos acontecimentos naturais. A doutrina aristotélica, garantida pela autoridade
dos séculos, consagrada por sua união à teologia católica e devido a sua
conclusiva organicidade de princípios, permanecia como o fundamento sólido de
toda educação teórica nas universidades, como o critério indiscutível de
verdade para o mundo dos doutos, e seu autor, Aristóteles, como a autoridade
inconteste nas ciências (cf. MARICONDA, 2000).
Pode-se então entender que durante a
polêmica sobre a compatibilidade de Copérnico com a Bíblia, ocorrida entre
1613-1616 (primeiro processo) e do qual resultou a condenação de Copérnico (cf.
GALILEI, 1932 [1613-1616]; NASCIMENTO, 1988; MARICONDA, 2000), a crítica de
Galileu à autoridade e à tradição, em particular a de Aristóteles, fosse também
uma luta institucional que acabaria colocando contra ele os filósofos das
universidades e toda a estrutura universitária tradicional. Como professor de
matemática na universidade, Galileu estava obrigado a ensinar a geometria de
Euclides e a astronomia de Ptolomeu; como físico, devia ser filósofo natural,
ou seja, estava limitado à exegese e interpretação filosóficas da física
aristotélica. Em outros termos: não havia lugar no currículo universitário da
primeira metade do século XVII para as investigações mecânicas, consideradas,
do ponto de vista da distinção acima, como investigações eminentemente
técnicas, e não científicas, possuidoras, portanto, de um valor secundário (cf.
GALILEI, 2004 [1632]; MARICONDA, 2000).
Mas há um sentido claro em que a ciência
de Galileu difere da simples techne em sentido aristotélico. A ciência de
Galileu - a ciência moderna - não separa mais episteme e techne, ciência e
técnica, mas é antes uma ciência útil, no sentido não apenas de ter
conseqüências práticas, isto é, de incluir um tratamento matemático de muitos
problemas físicos de caráter prático, mas também de poder ser controlada,
testada e avaliada por essas conseqüências práticas. Para apreciar a dimensão
técnica da obra científica de Galileu é preciso considerar o desenvolvimento de
seu trabalho científico no período paduano (1597-1610) e anterior, portanto, à
descoberta do telescópio e à longa fase dedicada à astronomia e à defesa do
movimento da Terra. Percebe-se, então, que a ciência de Galileu é ciência útil
desde o início, muito antes do copernicanismo ocupar totalmente a agenda
científica de Galileu.
Com efeito, logo no início de sua
carreira, Galileu desenvolveu pesquisas mecânicas em duas direções: (1) atenção
para aspectos da estática no sentido de uma teoria da resistência dos
materiais; (2) estudos dos elementos e composição das máquinas. Essas direções
de pesquisa estão claramente presentes nos dois tratados militares – Breve
instruzione all’architettura militare (GALILEI, 1932a); e Trattato di fortificazione
(GALILEI, 1932b) –, cujo objetivo indisfarçável é mostrar a aplicabilidade
técnica da nova ciência, e no pequeno tratado manuscrito intitulado Le
mecaniche (GALILEI, 1932c), que alcançou grande difusão, chegando a ser
publicado em tradução francesa por Mersenne, em 1634. Ora, o que acontece aqui
é o nascimento de uma concepção de ciência que está aliada a uma nova concepção
da racionalidade científica para a qual há uma estreita relação entre o
trabalho científico e o trabalho técnico. 5 Grande parte das transformações que
se produziram na mentalidade científica, em particular, na física do século
XVII, originou-se das sempre novas exigências e das questões cada vez mais
precisas levantadas pelos técnicos.
O que os técnicos procuram é saber com
exatidão como se comportam certos fenômenos particulares, de modo que possamos
saber como agir quando nos confrontamos com esses fenômenos. É por isso que,
para os técnicos, como para Galileu, as discussões dos físicos aristotélicos
acerca das causas dos fenômenos naturais e as especulações dos filósofos das
universidades acerca da essência última da Natureza parecerão desprovidas de
interesse e significação. Essa aliança entre a ciência e a técnica, que tem em
Galileu um de seus primeiros defensores, conduziu obviamente a uma radical
transformação da problemática científica, a uma caracterização inteiramente
nova das próprias pesquisas científicas e de seus objetivos, a um novo estilo
de sistematização e exposição. Contudo, não se deve pensar que essa transformação
consistiu em afastar da ciência todas as argumentações teóricas. Foram
afastadas apenas aquelas investigações teóricas que, por sua generalidade, por
seu caráter excessivamente abstrato e especulativo, fogem a qualquer
possibilidade de controle, mantendo-se apenas com base na autoridade conferida
pela tradição.
Na nova concepção de ciência, serão
deixadas de lado as especulações desprovidas de relação com a experiência,
abrindo espaço para aquelas
considerações teóricas (1) que podem conduzir à formulação de leis naturais, ao
estabelecimento de previsões, à estipulação de regras práticas visando à ação e
(2) que podem ser controladas pela experiência e pelas conseqüências práticas.
Isso significa que a ciência, ao enfrentar os problemas levantados pela
técnica, não realiza apenas uma função prática, mas preenche também uma função
teórica de justificação racional de certas práticas técnicas, de certos modos
especializados de fazer. Dito de outro modo, as reflexões e os raciocínios
práticos dos técnicos viriam a ser justificados pelas especulações da ciência
natural nascente.
Cada vez mais a especulação científica
se fundamentaria nas próprias atividades práticas, abrindo assim a
possibilidade de que as teorias científicas fossem julgadas não só pelo seu
valor teórico, mas também pelo aporte que fornecem à solução de problemas
técnicos.Dois exemplos marcantes dessa relação entre a teoria e a prática,
característica da união entre ciência e técnica, encontram-se justamente na
grande obra final de Galileu, Discorsi e dimostrazioni matematiche intorno a
due nuove scienze (GALILEI, 1933 [1638]; 1988 [1638]), que retoma as direções
iniciais da pesquisa mecânica dan-do-lhe agora uma cinemática física (uma
descrição matemática do movimento dos corpos físicos). Assim, tanto a Segunda
Jornada, na qual Galileu apresenta a primeira nova ciência que trata da
resistência dos materiais, como na Quarta Jornada, na qual desenvol-e uma parte
importante da segunda nova ciência, a saber, a teoria do movimento dos projéteis,
é evidente a união entre a teoria e a prática.
A primeira nova ciência é notável nesse
aspecto. Nela, Galileu introduz considerações sobre o “efeito-escala”, que se
mostram básicas para esse tipo de estudo abrindo a possibilidade dos testes de
laboratório com protótipos menores que os originais. É possível. a partir do
conhecimento fornecido pela ciência da resistência dos materiais, projetar
grandes estruturas com cálculo prévio dos esforços e pontos de ruptura, do tipo
de material a ser utilizado em vista do esforço exigido etc. O aporte prático
da primeira nova ciência de Galileu é, portanto, decisivo. Galileu está não
apenas fundando uma nova ciência, uma nova teoria sobre a resistência dos
materiais, mas definindo os contornos de um novo tipo de atividade
profissional, a engenharia civil. Não é menor o aporte prático da teoria do
movimento dos projéteis da Quarta Jornada, da qual Galileu tinha razão em se
orgulhar, pois a teoria dos projéteis desenvolvida nela permite informar a
prática dos artilheiros que podem, a partir de então, produzir “tiros
científicos”, isto é, planejar de antemão o uso da artilharia (cf. MARICONDA;
VAS-CONCELOS, p. 239-42).
A introdução nas práticas científicas do
método experimental favoreceu a consolidação dessa união entre a ciência e a
técnica, pois gerou um ciclo entre a teoria, o instrumento e o experimento;
ciclo que pode ser esquematicamente representado como segue: Esse ciclo, que
está claramente presente na obra de Galileu, revelou-se especialmente
apropriado para promover a união entre ciência e técnica, a qual permitiu, a
longo termo, que a ciência permeasse todo o mundo no qual vivemos, fazendo com
que nossa civilização seja essencialmente uma civilização técnico-científica.
4. MATEMATIZAÇÃO DA
NATUREZA E MECANIZAÇÃO DO MUNDO
Um terceiro aspecto de impacto
significativo sobre o conjunto organizado da cultura e que é, ao mesmo tempo, a
expressão cabal da profunda modificação nas concepções de natureza, de ciência
e da capacidade humana (realizada por autores como Copérnico, Kepler, Galileu,
Descartes) é esses autores terem promovido de modo estreitamente vinculado a
matematização e a mecanização da natureza. Convém, neste ponto, deter-se mais
sobre o alcance da trans-formação suscitada pela simples idéia do movimento da
Terra para aprofundar a compreensão do vínculo entre a matematização da
natureza e a concepção de Copérnico de que a Terra é um planeta que, como todos
os demais, gira em torno do Sol. Dois aspectos são responsáveis pela fascinação
e também pela reação e resistência produzidas pelo sistema heliocêntrico de
Copérnico. O primeiro diz respeito ao elemento nevrálgico e essencial da
história do pensamento sobre o qual age a chamada revolução copernicana.
O segundo refere-se a uma espécie de
forma pura, como que invariante, que permite caracterizar o copernicanismo como
um tipo específico de postura científica e filosófica. Com efeito, até
Copérnico, pode-se dizer que as próprias categorias do pensamento estão
organizadas em torno da afirmação de nossa posição central no Universo, de modo
que a concepção geocêntrica faz parte do núcleo da concepção antropocêntrica da
cultura. Percebemos, por razões ligadas, em parte, à estrutura de nossa
percepção, em parte a nossa evolução antropológica, que a Terra está imóvel no
centro do lugar de nossa percepção, ou seja, a imobilidade da Terra assenta-se
sobre um conceito de observador ou de sujeito perceptivo ligado ao seu lugar
central que se confunde com aquilo que sua percepção lhe informa. Há, portanto,
uma unidade entre o Geo-centrismo e a fenomenologia do sensível espontaneamente
praticada por nós.
No universo ptolomaico, o lugar central
do observador terrestre imóvel é a lei daquilo que é. A organização do real
fenomênico é o efeito da percepção de um observador e depende de seu lugar, mas
sua auto percepção permanece imediata. Isto significa que, embora também aqui
haja, de certo modo, uma aparência constituída, ela, entretanto, constitui-se a
partir do próprio ser e de suas categorias. Em suma, a aparência, para
Aristóteles, é constituída a partir de categorias que são como uma sintaxe do
próprio ser das coisas e não dependem da maneira pela qual podemos conhecer
essas coisas. Entende-se, assim, que a tese copernicana do movimento da Terra,
ao descentralizar o observador e colocá-lo em movimento, terá um impacto de
fundamental importância sobre o conjunto especificamente organizado da cultura,
opondo-se diretamente ao conjunto do saber, da ciência, da religião e da
opinião comum. No plano científico, com Copérnico, o movimento do observador
passa a ter uma função radical ou primitiva, de modo que “salvar as aparências”
quer dizer agora restaurar sob as aparências os princípios da física que as
explicam e que, portanto, tornam possíveis essas aparências.
Em suma, na astronomia de Copérnico
existe uma pretensão de explicação que invade o terreno que a tradição havia
reservado à filosofia natural (cf. MARICONDA, 2000, p. 92-6; MARICONDA;
VAS-CONCELOS, Cap. 3). Essa pretensão de explicação consiste basicamente em afirmar
que o conjunto de observações astronômicas deve ser explicado em termos das
leis, da ordem, da estrutura e da interação subjacentes aos fenômenos relatados
por essas observações, que são assim tomadas como efeitos aparentes de causas
subjacentes inobserváveis (cf. MARICONDA; LACEY, 2001). Ela se encontra
claramente presente nos dois grandes copernicanos, Kepler e Galileu. No caso
deste último, pode-se apreciar esse aspecto na explicação das marés
desenvolvida na Quarta Jornada do Diálogo sobre os dois máximos sistemas,
segundo a qual as marés são causadas pela combinação do duplo movimento de
rotação e translação da Terra, sendo assim o efeito visível de causas
inobserváveis para o observador terrestre (GALILEI, 2004 [1632]; MARICONDA,
1999; MARICONDA; VAS-CONCELOS, 2006, p. 166-83).
Do ponto de vista do desenvolvimento da
mecânica, todos os autores importantes do século XVII, tais como Kepler,
Galileu, Descartes, Mersenne, perceberam a necessidade de unificar a astronomia
heliocêntrica de Copérnico com as concepções mecânicas da nova ciência. Para
todos esses autores, a adesão ao sistema copernicano se insere no quadro
intelectual da crítica moderna, feita em nome da razão, à astronomia e à
cosmologia tradicionais, que separavam essencialmente Céu e Terra, atribuindo
aos corpos celestes os movimentos circulares considerados perfeitos (completos)
e às coisas terrestres os movimentos retilíneos considerados imperfeitos
(incompletos). Além disso, a concepção tradicional separava a astronomia,
entendida como simples hipótese e descrição matemática dos movimentos
observados dos corpos celestes, e a física (filosofia natural), entendida como
o estudo das causas e essências das mudanças e transformações que vemos
acontecer a nossa volta. Com a adesão ao copernicanismo, Galileu e Kepler são
levados a criticar essa visão tradicional de que o universo está composto por
duas regiões heterogêneas (essencialmente diferentes) e, de certo modo, a
superá-la dando um importante passo na direção da homogeneização do universo,
isto é, da concepção de que todas as regiões do universo estão sujeitas às
mesmas leis (GALILEI, 2004 [1632], Primeira Jornada; MARICONDA, 2005).
Quando se compara a pesquisa
astronômica, de Kepler, com a pesquisa mecânica, de Galileu, pode-se perceber
uma profunda semelhança entre elas: ambas revelam um claro direcionamento
metódico na procura por regularidades matematicamente formuláveis observadas
nos fenômenos naturais. A procura por leis da natureza, por regularidades
existentes entre os fenômenos naturais observados é a marca da ciência moderna.
A formulação dessas leis, isto é, de enunciados precisos e verificáveis pela
experiência, expressos em linguagem matemática, acerca das relações universais
que existem entre os fenômenos particulares, passa a ser um dos objetivos
centrais da pesquisa científica. Assim, tanto o programa mecânico de Galileu
como o programa astronômico de Kepler se inserem no quadro da constituição de
uma ciência física que procura formular as leis universais e matemáticas do
movimento, visando à unificação da astronomia, ou a teoria dos movimentos
planetários, com a mecânica, ou a teoria dos movimentos locais ou terrestres, e
lançando as bases sobre as quais Newton construirá a dinâmica, ou seja, a
explicação de por que os corpos se movem do modo como vemos que se movem
(GALILEI, 2005 [1624]; MARICONDA, 2005). Mas há outra dimensão do programa
mecânico de Galileu que convém ressaltar justamente porque corresponde às
repercussões das novas ciências de Galileu para além do campo estritamente
científico em direção à visão moderna da natureza concebida como um mecanismo
regido por leis matemáticas. Adentramos, agora, no núcleo da concepção
mecanicista que dá sustentação à matematização da natureza. Com efeito, esses
dois processos matematização e mecanização da natureza – estão interligados em
Galileu, como se depreende do estabelecimento, em Il saggiatori, das condições
epistemológicas efetivas para a aplicação da matemática à experiência com a
formulação da distinção entre qualidades primárias – forma, figura, número,
movimento e contato – e qualidades secundárias – cor, odor, sabor, som
(GALILEI, 1933 [1623], p. 347-52; 1973 [1623], p 217-20).
Estas últimas qualidades, segundo Galileu, não
residem no corpo observado, mas no observador; como só possuem uma existência
assegurada pela subjetividade perceptiva, são apenas “nomes” para sentimentos
ou afecções sentidas pelo sujeito da percepção. Por outro lado, as qualidades
primárias que não podem ser eliminadas, pois participam necessariamente do
conceito de corpo físico, existem nele como elemento racional passível de
tratamento matemático. A distinção entre qualidades primárias e secundárias,
inaugurada por Galileu, propõe, de modo claro, a eliminação das qualidades
subjetivas e reduz a natureza a termos quantitativos, isto é, passíveis de
tratamento matemático e de determinação experimental. A redução drástica do
variegado feixe de qualidades sensíveis àquelas que podem receber tratamento
matemático é representativa não só da assimilação do espaço físico
qualitativamente diferenciado ao espaço geométrico homogêneo, assimilação que
ex-pressa emblematicamente a perspectiva da matematização da natureza, mas se
constitui, sobretudo, como a circunscrição da base ontológica indispensável
para proceder à mecanização da concepção da natureza e do mundo (cf. MARICONDA;
VASCON-CELOS, 2006, p. 108-14).
5. A AUTONOMIA DA
CIÊNCIA E A UNIVERSALIDADE DO MÉTODO
Há,
finalmente, uma quarta consideração historicamente importante que também se
liga à firme adesão de Galileu ao Helio-centrismo e que diz respeito ao que é
conhecido como o caso Galileu, isto é, aos episódios de condenação de
Copérnico, em 1616 (GALILEI, 1932 [1613-1616]; NASCIMENTO, 1988; MARICONDA,
2000) e de Galileu, em 1633, pela Inquisição romana (FAVARO, 1938; PAGANI;
LUCIANI, 1994). Neste aspecto, a defesa galileana da cosmologia copernicana
adquire um maior alcance cultural que ultrapassa as fronteiras do campo
científico, adquirindo uma dimensão intelectual efetiva. Vista sob este ângulo,
o principal significado da adesão galileana ao copernicanismo está na sua
rejeição explícita do critério de autoridade – seja da autoridade de
Aristóteles, seja da autoridade das Sagradas Escrituras – como critério de
verdade nas questões científicas e sua conseqüente defesa da liberdade de
pesquisa científica. Essa defesa da liberdade de pesquisa científica, que pode
ser resumida na afirmação de Galileu de que a verdade das concepções
científicas – em particular, a verdade da teoria de Copérnico – deve ser
decidida por experiências sensíveis e demonstrações necessárias, corresponde,
em grande medida, a um programa político co-cultural que, partindo de uma
cuidadosa separação dos domínios da teologia e da ciência, tinha um duplo
objetivo (GEYMONAT, 1984).
Em primeiro lugar, procurava afastar a
objeção de que o sistema copernicano – principalmente no que diz respeito a
suas teses da centralidade do Sol e da mobilidade da Terra – era contrário às
Sagradas Escrituras, a qual o colocava do ponto de vista da ortodoxia teológica
(estabelecida pelo Concílio de Trento), sob a grave suspeita de heresia. E, em
segundo lugar, tinha a clara intenção de evitar que a Igreja se opusesse ao
progresso da nova ciência alinhando-se com seus opositores tradicionalistas,
que impediam a difusão das novas idéias nas universidades, obstruindo assim a
organização comunitária e a institucionalização das novas disciplinas
científicas. Digamos que Galileu pretendia que é possível ser um bom católico
e, ao mesmo tempo, ser copernicano. É possível acreditar em Deus, seguir a
Bíblia e, mesmo assim, provar que a Terra se move.
A resposta de Galileu ao problema da
suposta incompatibilidade entre a teoria de Copérnico e a Bíblia consiste,
pois, em considerar primeiramente que, nos assuntos naturais, não pode ser
atribuída às Escrituras uma autoridade superior àquela da própria natureza
(GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 283; 1988, p. 19). Como, além disso, a ciência
matemática da natureza possui um método independente (autônomo) de aferir a
verdade e de chegar a decisões racionais nas polêmicas acerca de questões
naturais, ela não precisa apoiar-se em nenhuma autoridade exterior a sua
própria esfera de competência. A autonomia da ciência está, assim, assentada
numa tese de suficiência do método científico para aferir a verdade das teorias
naturais mediante um escrutíneo crítico baseado em “experiências sensíveis” e
“demonstrações necessárias”, estas últimas identificadas por Galileu com o
raciocínio demonstrativo matemático (cf. GALILEI, 2003; MARICONDA, 2003, p.
70-3). Este é o lugar para lembrar que os pronunciamentos metodológicos de
Galileu coincidem em reiterar que o método científico consiste numa combinação
peculiar de experiência com raciocínio matemático. Em geral, entretanto, eles
não vão além da afirmação de que o método científico está composto por
experiências sensíveis e demonstrações necessárias.
No Diálogo sobre os dois máximos
sistemas do mundo, por exemplo, o papel das experiências sensíveis está
articulado em torno do que Galileu considera como o princípio empirista de
Aristóteles, segundo o qual “a experiência sensível deve ser anteposta a
qualquer discurso fabricado pelo engenho humano” (GALILEI, 2004 [1632], p. 113,
p. 131-2, nota 39). Esse mesmo tipo de consideração reaparece, muitos anos mais
tarde, em uma carta de 1640, na qual o aspecto crítico do princípio empirista,
tal como interpretado por Galileu, é ressaltado, pois “antepor a experiência a
qualquer discurso” é um preceito “há muito tempo anteposto ao valor e à força
da autoridade de todos os homens do mundo, à qual V. Sa. mesma admite que não
só não devemos ceder à autoridade dos outros, mas devemos negá-la a nós mesmos,
toda vez que encontramos que o sentido nos mostra o contrário” (GALILEI, 2003,
p. 76).
Fica evidente que a parte do método
referente às experiências sensíveis, expressa pelo princípio de “antepor a
experiência a todo discurso”, serve de antídoto para o recurso à autoridade. É
o escrutíneo crítico pela experiência que torna o método científico livre de toda
e qualquer autoridade, até mesmo daquela do autor do discurso (cf. MARICONDA,
2003, p. 71-3). Convém, entretanto, ter claro que Galileu não reivindica
qualquer inovação no método da ciência, ou antes, nunca reivindica
anterioridade ou precedência em questões metodológicas. As questões de
precedência em que Galileu se envolveu são todas propriamente científicas: ou
observacionais ou de conteúdo conceitual de teses teóricas que envolvem a
análise matemática da experiência, como, por exemplo, a determinação da
trajetória parabólica dos projéteis. Nesse sentido, Galileu não pretende
reformar o Organon, como o faz Francis Bacon, nem dar ao método um domínio
próprio e um tratamento sistemático, propondo-o como propedêutica ao
conhecimento científico, como o fará Descartes. O que Galileu faz é reivindicar
a suficiência do método científico para decidir acerca das questões naturais,
para as quais se pode usar a experiência, o discurso e o intelecto, em suma,
para as quais se pode empregar a razão natural (GALILEI, 1932 [1613-1616], p.
284; 1988, p. 20).
Por fim, dado que a natureza prevalece
sobre a Escritura, pois nem tudo que está escrito nesta última “está ligado a
obrigações tão severas como cada efeito da natureza” (GALILEI, 1932
[1613-1616], p. 283; 1988, p. 19), e dado que a ciência emprega um método
autônomo para aferir a verdade das concepções naturais, que é também o único
método acessível à capacidade humana, as conclusões naturais devem não só
prevalecer sobre a letra da Escritura, mas também servir de base para a
determinação de seu verdadeiro sentido. Ou seja, como diz Galileu: “[...] é
ofício dos sábios expositores afadigar-se para encontrar os verdadeiros
sentidos das passagens sacras concordantes com aquelas conclusões naturais das
quais primeiramente o sentido manifesto ou as demonstrações necessárias
tornaram-nos certos e seguros” (GALILEI, 1932 [1613-1616], p. 283; 1988, p.
19-20). Desse modo, Galileu associa à suficiência do método científico a
afirmação da universalidade do juízo científico.
A polêmica teológico-cosmológica,
desenvolvida entre 1613 e 1616, transcende claramente o nível interno do campo
científico para apresentar aspectos externos de cunho intelectual e político.
Nesse sentido, a defesa do copernicanismo não é apenas uma questão de
preferência teórica, a ser julgada com base em padrões estritamente
científicos, pelo sistema copernicano em detrimento do sistema ptolomaico ou do
sistema de Tycho Brahe, mas é fundamentalmente uma polêmica que envolve a
transformação mesma dos padrões de juízo científico e uma nova circunscrição do
campo científico. Ambos os aspectos conduzem inevitavelmente a uma atuação no
domínio mais amplo da cultura e da organização institucional das disciplinas e
“carreiras profissionais” nas universidades da época. Assim, Galileu defende
não só que a ciência possui um método suficiente que torna os seus juízos
independentes (livres) do princípio da autoridade teológica, mas também afirma
incisivamente, como é de se esperar no caso da defesa de autonomia de um campo
ou disciplina científicos, a universalidade do seu juízo, pois os intérpretes
da Bíblia devem procurar adequar seus comentários às verdades estabelecidas
pela ciência ou ainda abster-se de produzir juízos sobre assuntos que podem vir
a ser contraditos pelo conhecimento obtido pela razão natural.
Após um penoso julgamento, Galileu foi
obrigado, pela Inquisição Romana, em 1633, a abjurar sua defesa do sistema
copernicano, vitimado não só pela intriga de seus opositores, mas
principalmente pela firme disposição da Contra reforma em manter a ortodoxia
teológica católica contra, de um lado, as igrejas nascidas com a Reforma e, de
outro, contra toda forma suspeita de heterodoxia das forças progressistas e
leigas da nova ciência. A condenação de Galileu significou obviamente a
falência da parte político-institucional do ambicioso programa galileano, mas
não retirou dele seu profundo alcance cultural, que se expressa na clara
consciência da independência dos padrões de julgamento das realizações
científicas com relação aos padrões teológicos impostos pelas instituições
eclesiásticas e com relação aos padrões valorativos baseados na autoridade de
Aristóteles e defendidos pela tradição das universidades. Cabe, portanto, a
Galileu também o mérito de ter percebido com admirável clareza que a
independência dos padrões científicos de julgamento e a conseqüente liberdade
de pesquisa científica eram fundamentais para a formação de comunidades
científicas e para o processo de institucionalização através dos quais a nova
ciência se consolidaria nos Estados Modernos durante os séculos XVII e XVIII. A
ciência moderna nasce e prospera sobre as ruínas do autoritarismo e só passará
a integrar os currículos universitários no século XVIII, principalmente depois
da Revolução Francesa.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As quatro características, que se
mostrou estarem presentes na obra de Galileu, revelam que a imagem comum do
pisano como fundador da física clássica e do método experimental é bastante
adequada, exceto por atribuir ao indivíduo mais do que ele pode efetivamente
fazer, porque, com efeito, a criação da física clássica e a invenção do método
experimental são processos histórico-sociais que dependem do concurso dos
humanos. São, nesse sentido, coletivos, pois dependem, para efetivar-se, de
colaboração e organização. Ainda assim, Galileu, como homem de sua época, é
daquela estirpe de indivíduos que personifica um certo ethos, um certo conjunto
de práticas e procedimentos, conjunto esse, em seu caso, definidor de um estilo
científico característico da primeira modernidade (cf. MARICONDA; VASCONCELOS,
2006, p. 210-6). É inegável que, com Galileu, nasce uma nova figura no cenário
intelectual e cultural, a figura do cientista (cf. MARICONDA, 1989; MARICONDA;
VASCONCELOS, 2006, 14-19); ou, melhor dito, nasce, nos séculos XVI e XVII, uma nova atividade intelectual, a
científica, da qual Galileu é, sem dúvida, um dos mais expressivos
representantes.