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ÉTICA E VONTADE EM SANTO AGOSTINHO


 O último dos antigos e o primeiro dos modernos, santo Agostinho foi o primeiro filósofo a refletir sobre o sentido da história, mas tornou-se acima de tudo o arquiteto do projeto intelectual da Igreja Católica. Aurélio Agostinho, em latim Aurelius Augustinus, nasceu em Tagaste, atualmente Suk Ahras, na Argélia, em 13 de novembro de 354, filho de Patrício, homem pagão e de posses, que no final da vida se converteu, e da cristã Mônica, mais tarde canonizada. Agostinho estudou retórica em Cartago, onde aos 17 anos passou a viver com uma concubina, da qual teve um filho, Adeodato. A leitura do Hortensius, de Cícero, despertou-o para a filosofia. Aderiu, nessa época, ao maniqueísmo, doutrina de que logo se afastou. Em 384 começou a ensinar retórica em Milão, onde conheceu santo Ambrósio, bispo da cidade.
Cada vez mais interessado pelo cristianismo, Agostinho viveu longo conflito interior, voltou-se para o estudo dos filósofos neoplatônicos, renunciou aos prazeres físicos e em 387 foi batizado por santo Ambrósio, junto com o filho Adeodato. Tomado pelo ideal da ascese, decidiu fundar um mosteiro em Tagasta, onde nascera. Nessa época perdeu a mãe e, pouco depois, o filho. Ordenado padre em Hipona (391), pequeno porto do Mediterrâneo, também na atual Argélia, em 395 tornou-se bispo-coadjutor de Hipona, passando a titular com a morte do bispo diocesano Valério. Não tardou para que fundasse uma comunidade ascética nas dependências da catedral.
Em sua vida e em sua obra, santo Agostinho testemunha acontecimentos decisivos da história universal, com o fim do Império Romano e da antiguidade clássica. O poderoso estado que durante meio milênio dominara a Europa estava a esfacelar-se em lutas internas e sob o ataque dos bárbaros. Em 410 santo Agostinho viu a invasão de Roma pelos visigodos e, pouco antes de morrer, presenciou o cerco de Hipona pelo rei dos vândalos, Genserico. Nesse clima, em que os cismas e as heresias eram das poucas coisas a prosperar, ele estudou, ensinou e escreveu suas obras.
Pensamento. As obras mais importantes de santo Agostinho são De Trinitate (Da Trindade), sistematização da teologia e filosofia cristãs, divulgada de 400 a 416 em 15 volumes; De civitate Dei (Da cidade de Deus), divulgada de 413 a 426, em que são discutidas as questões do bem e do mal, da vida espiritual e material, e a teologia da história; Confessiones (Confissões), sua autobiografia, divulgada por volta de 400; e muitos trabalhos de polêmica (contra as heresias de seu tempo), de catequese e de uso didático, além dos sermões e cartas, em que interpreta minuciosamente passagens das Escrituras.
No pensamento de santo Agostinho, o ponto de partida é a defesa dos dogmas (pontos de fé indiscutíveis) do cristianismo, principalmente na luta contra os pagãos, com as armas intelectuais disponíveis que provêm da filosofia helenístico-romana, em especial dos neoplatônicos como Plotino. Para pregar o novo Evangelho, é indispensável conhecer a fundo as Escrituras, que só podem ser bem interpretadas através da fé, pois apenas esta sabe ver ali a revelação de verdades divinas. Compreender para crer e crer para compreender, tal é a regra a seguir.
Baseado em Plotino, santo Agostinho acha que o homem é uma alma que faz uso de um corpo. Até naquele conhecimento que se adquire pelos sentidos, a alma se mantém em atividade e ultrapassa o corpo. Os sentidos só mostram o imediato e particular, enquanto a alma chega ao universal e ao que é de pura compreensão, como os enunciados matemáticos. Mas se não é através dos sentidos, por qual via a alma consegue alcançar as verdades eternas? Será através do sujeito particular e contingente, ou seja, o homem que muda, adoece e morre?

Tudo indica que, se o homem mutável, destrutível, é capaz de atingir verdades eternas, sua razão deve ter algo que vai além dela mesma, não se origina no homem nem no mundo externo, mas em Deus. Portanto, Deus faz parte do pensamento e o supera o tempo todo. Desse modo só pode ser achado e conhecido no fundo de cada um, no percurso que se faz de fora para dentro e das coisas inferiores para as coisas superiores. Ele não pode ser dito ou definido: é o que é, em todos os tempos e em qualquer lugar (é clara, nessa concepção, a influência de Platão, que santo Agostinho assume em vários pontos de sua obra).
Outra contribuição decisiva é sua doutrina sobre a Santíssima Trindade. Para Agostinho a unidade das três pessoas é perfeita: não se podem separar, nem uma se subordina à outra, como defenderam Orígenes e Tertuliano, mas a natureza divina seria anterior ao aparecimento das três pessoas; estas se apresentam como os três modos de se revelar o mistério de Deus. A alma, para santo Agostinho, se confunde com o pensamento, e sua expressão, sua manifestação é o conhecimento: por meio deste a alma -- ou o pensamento -- se ama a si mesma. Assim, o homem recompõe nele próprio o mistério da Trindade e se vê feito à imagem e semelhança de Deus: se ele ama e se conhece dessa maneira, ele conhece e ama a Deus, conseqüentemente mais interior ao ser humano do que este mesmo.
O famoso cogito de Descartes ("Penso, logo existo"), em que a evidência do eu resiste a toda dúvida, é genialmente antecipado por santo Agostinho em seu "Se me engano, sou; quem não é não pode enganar-se". Ele valoriza, pois, a pessoa humana individual até quando erra (o que, neste aspecto, não a torna diferente da que acerta). Talvez por isso dê o mesmo peso à parte humana e à parte divina no que diz respeito à encarnação do Cristo.
A salvação do homem, na teologia agostiniana, é algo completamente imerecido e que depende tão só da graça de Deus; graça que, no entanto, se manifesta aos homens por meio dos sacramentos da igreja visível, católica. Importantes para a salvação, esses sacramentos compreendem todos os símbolos sagrados, como o exorcismo e o incenso, embora a eucaristia e o batismo sejam os principais para ele.
Da mesma forma que concebe a natureza divina, santo Agostinho concebe a criação, idéia pouco tratada pelos gregos e característica dos cristãos. As coisas se originaram em Deus, que a partir do nada as criou. Pois o que muda e se move, o que é relativo e passa ou desaparece requer o imutável e o absoluto, essência do próprio Deus, que criou as coisas segundo modelos eternos como ele mesmo. Assim, o que o platonismo chamava de lugar do céu passa a ser, no pensamento agostiniano, a presença de Deus. Tudo o que existe no mundo foi criado ao mesmo tempo, em estado de germe e de semente. Como estes existem desde o início, a história do mundo evolui continuamente, mas nada de novo se cria. Entre os seres da criação existe uma hierarquia, em que o homem ocupa o segundo lugar, depois dos anjos.
Santo Agostinho afirma-se incapaz de solucionar a questão da origem da alma e, embora tão influenciado por Platão, não acha a matéria por si mesma condenável, assim como não encara como castigo a união da alma com o corpo. Não seria este, como se disse tanto, a prisão da alma: o que faz do homem prisioneiro da matéria é o pecado, do qual deve libertar-se pela vida moral, pelas virtudes cristãs. O pecado leva o corpo a dominar a alma; a religião, porém, é o contrário do pecado, é a dominação do corpo pela alma, que se orienta livremente para Deus, assistida pela graça.
Uma das mais belas concepções de santo Agostinho é a da cidade de Deus. Amando-se uns aos outros no amor a Deus, os cristãos, embora vivam nas cidades temporais, constituem os habitantes da eterna cidade de Deus. Na aparência, ela se confunde com as outras, como o povo cristão com os outros povos, mas o sentido da história e sua razão de ser é a construção da cidade de Deus, em toda parte e todo tempo. A obra de santo Agostinho, em si mesma imensa, de extraordinária riqueza, antecipa, além disso, o cartesianismo e a filosofia da existência; funda a filosofia da história e domina todo o pensamento ocidental até o século XIII, quando dá lugar ao tomismo e à influência aristotélica. Voltando à cena com os teólogos protestantes (Lutero e, sobretudo, Calvino), hoje é um dos alicerces da teologia dialética. Santo Agostinho morreu em Hipona, em 28 de agosto de 430. E nessa data, 28 de agosto, é festejado como doutor da igreja.


2. ÉTICA E VONTADE EM SANTO AGOSTINHO

A teoria da Vontade é uma categoria de extrema originalidade na ética de Santo Agostinho, tendo como parâmetro a obra “O Livre-Arbítrio”, sendo verificada a questão da Vontade em face à liberdade do Sujeito. Destarte, a Vontade é conditio sine qua non do pensamento ético Agostiniano e se reflete na liberdade do sujeito, pois uma vez o ser humano caído por causa do pecado, que é a desassimilação de Deus; pode retornar, frente à fuga das paixões e da acomodação, em busca de sua origem em Deus, o “thelos” – no caso a perfeita ordenação dos seres no Amor.

INTRODUÇÃO

A idéia de Vontade no pensamento ético de Aurélio Agostinho é uma temática inovadora para a filosofia daquele período (séc. IV d.C.), tendo em vista que os pensadores gregos, sobretudo Sócrates e Platão não haviam desenvolvido reflexões nesta categoria como matéria da ética. Para se compreender a temática anunciada, afirma-se sua gênese no interior do cristianismo neotestamentário e seu desaguar sistemático e científico nas obras do douto doutrinador da era patrística. Conforme Vásquez a ética consiste em “investigar o modo pelo qual a responsabilidade moral se relaciona com a liberdade e com o determinismo a qual nossos atos
estão sujeitos” (VÁSQUEZ, 1997, pg. 8). Deste postulado pode-se entender que o caráter ético é norteado por uma investigação sobre o agir do homem no mundo. Sendo assim, neste trabalho aquilo que parece ser fruto da apriorística, na verdade, resulta de uma observação reflexiva densa no interior da ética agostiniana.  Abeberando-se na eticidade do Bispo de Assim sendo, analisaremos a categoria de vontade no pensamento ético de Agostinho, em sua obra “O Livre-Arbítrio”. A vontade constitui-se enquanto uma inovação do bispo de Hipona naquele período, caracterizando-se como conditio sine qua non do pensamento deste autor. Temática esta que favorece ao indivíduo a opção de escolha de determinadas ações, pois o indivíduo, segundo Agostinho, age de acordo com a sua intenção, este aspecto que será de importante necessidade para a compreensão da eticidade agostiniana. Destarte, o mal e o bem não são essências ontológicas, em que o bem liga-se com a instância “espiritual” e o bem à materialidade, mas, na verdade, todas as coisas são boas – destacandose a influência das sagradas escrituras da tradição judaico-cristã – mas sim somente há o bem, o que qualificaria o mal, na verdade, seria a intenção do ser humano que estaria em desacordo com um querer universal. A vontade do indivíduo sofre por um processo de assimilação com a Vontade Divina, caracterizando esta identidade a beatitude, ou seja, a santidade do ser humano. Desta forma, na beatitude subentende-se o “fazer a vontade de Deus”, de um ser universal, do amor.

1. A INTERRELAÇÃO ENTRE FÉ E RAZÃO

A estrutura do pensamento do “Doctor Magnum” fundamenta-se nas Sagradas Escrituras da tradição judaico-cristã, de um modo especial, nas cartas paulinas; de onde se percebe a presença de um Deus onisciente, onipotente, onipresente e, sobretudo, de um Deus amor. Como também, teve certa influência da filosofia em sua estrutura de pensar o absoluto ancorado no Ser de Platão: imutável, eterno, perfeito. Utilizando-se desta para dar sustentáculo à primeira, visando uma sistematização lógica do discurso, a fim de torná-lo compreensível a outrem. Desta forma, percebe-se que Santo Agostinho em suas explicações
parte do dado da fé, da revelação, em função de uma sistematização, em sua maior parte para
a catequese, mas, também, exigindo-se o caráter apologético.
A partir do dado da fé, o Bispo de Hipona se esforçará para obter um embasamento lógico-racional. Inaugurando o pensamento que irá perpassar por toda a Idade Média, sendo que utiliza as categorias da razão para dar embasamento à fé, visando a fuga de um simples fideísmo, tendo em vista a compreensão da revelação divina (“credo ut intelligam”) e a razão buscando apoiar-se na fé, a fim de que não caia em uma busca pelo absurdo, mas perseguindo um fim desejado (“intelligo ut credam”). Fato este que não ocasiona uma submissão, mas uma inter-relação de formação mútua. O que Agostinho põe em relevo é uma interação entre a fé e a razão. De um lado, para crer é preciso perceber de algum modo que se deve crer e que aquilo que se crê, pelo menos não é absurdo. Para crer, é preciso de algum modo entender aquilo que nos é proposto como objeto de fé:

“entende – minha palavra – para crer”. De outro lado, o mistério da fé não é de modo nenhum para Agostinho o impenetrável e incompreensível, o inassimilável. Uma vez aceito pela fé, podemos procurar analogias que o iluminam e esclarecem de algum modo para nós. Isto quer dizer que, entre a pura aceitação na fé e a visão dos mistérios só acessível na contemplação dos bem-aventurados, podemos adquirir sempre novas luzes na fé que procura compreender: “crê – a palavra de Deus – para entender” (NASCIMENTO, 2004, pg. 17)

Agostinho destaca em seu pensamento ético a importância do autoconhecimento do sujeito, visando o conhecimento com a verdade revelada. Desta forma, como se verá no decorrer, deste capítulo, Agostinho sob a influência platônica e cristã revela a importância subjetiva da pessoa humana, sendo assim, pode-se verificar o caráter ético do pensamento agostiniano em sua célebre declaração nas Confissões:

Todos te consultam sobre o que querem, mas nem todos ouvem sempre o que querem. Servo fiel é aquele que não espera ouvir de ti o que desejaria ouvir, mas antes deseja aquilo que ouve de ti. Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançavame sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. (...) Eu te Saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz. (AGOSTINHO, 2004, pg. 295).


Como no pensamento judaico-cristão também recairá sobre Agostinho o ideal do homem enquanto “imago Dei”, onde O homem viveria para conhecer, amar e servir a Deus, diretamente em seus irmãos. O lema socrático do ‘conhece-te a ti mesmo’ volta à tona, em Santo Agostinho, que agora ensina que ‘Deus nos é mais íntimo que o nosso próprio íntimo’. (VALLS, 1993, pg. 44). O ser humano, na mesma constância que conhece o seu interior, aproxima-se de Deus. Deus é o princípio de todas as coisas, de onde tudo provém e deve retornar. Sendo assim, a especulação sobre Deus, torna-se uma especulação sobre o humano, especulação enquanto essência, sobre o que ele realmente é, enquanto fora criado à “imagem e semelhança” (Gn 1, 26) daquele. A partir da consciência deste ser absoluto ser eterno, imutável, infinito, o Sumo Bem, criador de todas as coisas, o homem passa a conhecer-se em sua subjetividade, enquanto ser criado e que possui sua essência em Deus. Conforme Vaz:

A unidade do homem é pensada não numa perspectiva ontológica, mas soteriológica, e ela se desdobra em três momentos que se articulam como momentos de uma história ou de um itinerário salvífico. Trata-se, pois, da unidade de um desígnio de salvação que da parte de Deus é dom ou oferecimento e da parte do homem é resposta ou aceitação, a recusa do dom implicando justamente a perda da unidade ou a cisão irremediável do seu ser por parte do homem. (Vaz, 1998, pg. 60)

Diferentemente de Sócrates o conhecimento não se situa no fato da inteligibilidade da essência ontológica enquanto tal, mas na verdade um conhecimento enquanto “telos”, ou seja, em vista a salvação que ocorre por meio da beatitude. Não é uma atividade meramente racional, mas, sobretudo, da vontade do ser humano. De acordo com o bispo de Hipona: (...) o Pai, o Filho e o Espírito Santo fazem o homem à imagem do Pai, do Filho e do Espírito Santo, para que assim ele tornasse imagem de Deus. Ora, Deus é Trindade. Mas pelo fato de que não foi feita aquela imagem de Deus como dele nascida, mas foi por ele criada, para mostrar esse sentido, a imagem não é para ser imagem igual, mas se aproximará dele por certa semelhança. Aproximamo-nos, pois, de Deus não mediante intervalos de tempo, mas pela semelhança com Deus, assim como dele nos afastamos pela dessemelhança. (AGOSTINHO, 1994, pg. 257)

2. RELAÇÃO ENTRE ÉTICA E VONTADE

A fundamentação primeira da ética encontra-se na questão do agir do homem no mundo, desta forma, faz-se necessário uma primeira abordagem a respeito de como se dá o conhecimento, o que em Platão seria por “reminiscência”, aqui o sujeito conhece a partir da “iluminatio Dei”: Deus que se faz presente a fim de que o homem, por meio da razão, passe a ter conhecimento da verdade, esta eterna e imutável. Desta forma, caracteriza-se o homem, enquanto ser racional que busca conhecer, onde a razão não é luz, mas sim, dádiva divina, ou seja, “reflexo da luz”. Deus ilumina o conhecimento humano, a fim de que possa chegar ao conhecimento, contudo, é dever do sujeito cognoscente conhecer-se a si mesmo e, conseqüentemente, chegar ao entendimento da verdade eterna e imutável. Deus é inteligível  e também inteligíveis são as proposições das ciências, porém, diferem em muito. Pois a terra é visível, como também o é a luz; mas a terra não pode ser vista se não for iluminada pela luz. Por isso, as coisas que alguém entende, que são ensinadas nas ciências, sem dúvida alguma ele as admite como verdadeiras, mas deve-se crer que elas não podem ser entendidas se não forem esclarecidas por outro, como que por um sol (AGOSTINHO, 1998, pg.34).
Com essa demonstração, percebe-se a dicotomia platônica entre os seres presentes no pensamento agostiniano, pois as coisas criadas – matéria – não possuem “luz própria”, são imperfeitas, por si só o indivíduo vaga na “escuridão” chegando a recair em paixões, erros e concupiscência. Mas de onde provêm as coisas materiais? Tais coisas materiais são seres criados por Deus, tendo em vista que este “tirou tudo do nada” (AGOSTINHO, 1995, pg. 29). Desta forma, pode-se notar que a criatura é causada pela ação do Ser no não-Ser, no caso o nada; fator este que explica o seu caráter mutável, um devir existente na matéria que gera a imperfeição, pois a matéria nunca é Ser. De acordo com Gilson:

As criaturas, ao contrário, só existem por ele, mas não são dele. Se fossem dele, elas seriam idênticas a ele, ou seja, não mais seriam criatura. A origem delas, sabemos, é totalmente outra. Criadas, elas foram tiradas do nada por ele. Ora, o que vem do nada não participa somente do ser, mas do não ser. Logo, nas criaturas há um tipo de falta original que, por sua vez, engendra a necessidade de adquirir e, conseqüentemente, de mudar. (GILSON, 2006, pg. 272).

Enquanto objeto criado, contudo, a matéria deve ser utilizada como meio de descobrimento do Ser, em descobrir a essência, pois ela é “iluminada”. O homem, por meio do contato com o plano material, deve ascender para um plano supra-sensível, ou seja, não pode se deter simplesmente no conhecimento sensível, pois o mesmo não traz uma verdade segura e confiável devido à sua multiplicidade, desta forma, tal conhecimento é marcado pela efemeridade. Mas a busca deve ser incessante por causas que se encontram além dos sentidos,
ou seja, no plano da metafísica – a priori do contato com a matéria – trazendo para o sujeito
Cognoscível um conhecimento seguro e universal – uno. Todo aquele que reflete sobre a verdadeira noção da unidade constata que ela não pode ser captada pelos sentidos corporais. Porque todo objeto atingido por um de nossos sentidos, seja ele qual for, não é constituído pela unidade, mas sim pela pluralidade que o forma. Com efeito, por ser um corpo, por aí mesmo, possui inúmeras partes (AGOSTINHO, 1995, pg. 102). Para tanto, o ser humano, em sua plenitude, deve estar subordinado à sua razão diferentemente dos demais sentidos, tais como a visão e audição que são capazes de perceber apenas os aspectos formais do objeto, garantindo ao sujeito o conhecimento de uma representação deste, tendo em vista que a razão conhece tudo, inclusive a si mesma, conforme se percebe em Agostinho: “Creio ser também evidente que esse sentido interior não somente sente as impressões que recebe dos cinco sentidos externos, mas percebe igualmente os mesmos sentidos” (AGOSTINHO, 1995, pg. 87).
A questão da vontade entrelaça-se neste ponto, pois o sujeito da ação necessita conhecer para saber se ele, de fato, quer agir de determinada maneira, ou seja, ele deve chegar a um conhecimento confiável, assim como fora visto no pensamento socrático e platônico a  fim de que o mesmo possa agir, sendo que em Agostinho o sujeito deve ser consciente da ação e manifestar a sua vontade diante dos objetos. Deste modo, o indivíduo deve focar seu entendimento no que transcende a materialidade e a multiplicidade dos objetos sensíveis, caso contrário, a sua vontade será determinada como múltipla e efêmera. O sujeito deve possuir uma vontade que transcenda estas postas, que o faça buscar uma unidade e universalidade do conhecimento e, conseqüentemente, do seu agir. Para compreensão da categoria de vontade, faz-se necessário o entendimento a respeito da temática da liberdade em Agostinho, pois uma sugere a outra. Só é possível falar em vontade, querer, caso haja a instância da liberdade do sujeito, caso contrário, ocorreria um querer direcionado não prevalecendo o querer do sujeito a respeito de suas escolhas particulares. Neste ponto a ética agostiniana se diverge da ética intelectiva socrático-platônica, pois conforme Reale:


A liberdade é própria da vontade, não da razão, no sentido em que a entendiam os gregos. E assim se resolve o antigo paradoxo socrático de que é impossível conhecer o bem e fazer o mal. A razão pode conhecer o bem e a vontade pode rejeitá-lo, porque, embora pertencendo ao espírito humano, a vontade é uma faculdade diferente da razão, tendo uma autonomia própria em relação à razão, embora seja a ela ligada. A razão conhece e a vontade escolhe, podendo escolher inclusive o irracional, ou seja, aquilo que não está em conformidade com a reta razão (REALE, 1990, pg. 457).



3. VONTADE E LIBERDADE CONDIÇÕES DA ÉTICA EM AGOSTINHO

Abordando a temática da liberdade é necessário uma introspecção a respeito do livre arbítrio, ou seja, da liberdade de escolha das ações, sejam boas ou más. Desta forma, abordando estas temáticas, elas servirão para compreensão do motivo que a vontade desaguar no campo da ética agostiniana. Desta forma, faz-se necessária a abordagem por meio dos juízos de valores, tais como dizer se algo é bom ou ruim. Os juízos não dependem única e exclusivamente da matéria, mas sim da vontade do sujeito, da intenção que o ser humano possui naquele determinado fato, se caso ele está sendo guiado por uma má ou boa vontade, tendo em vista que esta influenciará na ação do sujeito criando uma relação existente entre conhecimento-vontade-agir, onde ambos devem estar concatenados para se visar um bem, caso contrário nem mesmo se a ação for garantida como boa pelo conhecimento, se ela não houver o querer do ser humano, tal ação não será bem realizada, conforme enfatiza Agostinho:  “Contra a vontade ninguém procede bem, ainda que a ação em si mesma seja boa” (AGOSTINHO, 1984, pg. 31). A problemática, desta forma, diferentemente do pensamento maniqueísta, toma um outro viés: a matéria não é presença do mal mas sim a intenção que o homem possui diante de tal matéria. De acordo com Vaz: A influência neoplatônica se fará sentir, sobretudo, na elaboração agostiniana do tema da estrutura do “homem interior” coroada pela mens (equivalente ao noûs da antropologia neoplatônica) e na qual Deus está presente como interior e superior (VAZ, 1998, pg. 64).
A instância do agir humano deve partir no íntimo de cada ser, sendo que ele deve ser consciente de tal ação e não desenvolvê-la pelo simples hábito ou conveniência, cada ação deve ser ato intencional e fruto da vontade do próprio sujeito. Em suma, “(...) lei do pecado é
a violência do hábito pela qual mesmo a alma, mesmo contrafeita, é arrastada e presa, porém merecidamente, porque se deixa livremente escorregar” (Agostinho, 1984, pg. 212). Tanto o hábito quanto a má vontade são reflexos pecaminosos, pois não analisam o objeto pelo que ele
é, mas já visando o objeto com inclinação:

Se o sistema agostiniano de idéias avalia hábitos (consuetudo) como sendo fatores consistentemente negativos na vida humana, já que são a fonte de obstáculos a superar na busca por Deus, por que as convenções seriam diferentes? As convenções podem ser ainda mais perniciosas; formam hábitos, outorgando-lhes legitimidade social, e não deveriam ser necessariamente acatadas. Na melhor das hipóteses, as convenções suprem as condições para a formação de signos e são basicamente os pontos de partida da comunicação humana. A totalidade do significado tem que ser algo completamente diferente das convenções e, no entanto, se as convenções formam signos lingüísticos é porque seu ser formado possui uma forma prévia e antecedente. (NEIVA, 2009, pg.192)


Sendo que a boa vontade caracteriza-se pelo desejo de assimilação com o Ser, que é uno, tal é o ato de beatitude, que visa não uma felicidade efêmera e passageira, mas sim a verdadeira felicidade, esta caracterizada pela perfeita ordem existente entre os seres. Destarte, tal querer tem que se transparecer por meio da práxis, não adiantando no pensamento ético agostiniano o ato deliberativo da vontade do sujeito, sem a existência da capacidade de escolha. Em suma, segundo Agostinho: É a vontade pela qual desejamos viver com retidão e honestidade, para atingirmos o cume da sabedoria. Considera agora, se não desejas levar uma vida reta e honesta, ou se não queres ardentemente te tornar sábio (AGOSTINHO, 1995, pg. 56). Já a má vontade está associada aos prazeres ligados à matéria, pois estes desembocam no vício e nas paixões, desta forma, não dando liberdade ao indivíduo para que o mesmo seja livre em suas escolhas, pois a “libido” direciona o agir do sujeito, um agir sempre condicionado não permitindo que ele se encontre na ação visando a beatitude – a vida feliz – mas, tão somente o benefício próprio. Tal processo é reconhecido pela desassimilação, em que o sujeito de ação torna-se cada vez mais divergente de sua essência, no caso Deus, diferenciando-se do princípio ordenador, criando uma dificuldade na relação dos seres. Tão logo isso ocorre quando se dá o mau uso da matéria, quando o seu conhecimento estende-se apenas ao plano sensível. Conforme Gilson:

Transgressão à lei divina, o pecado original teve por conseqüência a rebelião do corpo contra a alma, de onde vêm a concupiscência e a ignorância. A alma foi criada por Deus para reger seu corpo, mas eis que é, ao contrário, regida por ele. Voltada desde então para a matéria, ela se farta com o sensível e, como é de si mesma que se extrai as sensações e as imagens, esgota-se com fornecê-las (GILSON, 1995, pg.
154)


Desta forma, com o conhecimento das para que o Homem possa realizar boas ações deve passar a conhecer. O conhecimento ocorre por meio da instrução, a fim de que se possa despertar “em nós a ciência” (AGOSTINHO, 1995, pg. 26) – ou seja, a sabedoria; que é boa. Sendo assim, tanto o conhecimento quanto a instrução são bons por visarem o que os transcende. Conforme Gilson, “Conhecer é apreender pelo pensamento um objeto que não muda e que sua própria estabilidade permite manter sob o olhar do espírito” (GILSON, 2001,
pg. 146). O objeto do conhecimento é o bem, a chegada neste objetivo só ocorre por meio de
uma ascese do sujeito que acontece por utilização de uma correta instrução, tendo por finalidade a de educar a inteligência humana para tal busca, tornando-se, desta forma, algo incessante. Contudo, a carência, a deficiência no ato de instruir possibilita o sujeito à propensão ao mal agir; como também, a instrução depende diretamente da capacidade humana
do uso da inteligência, que é dádiva divina e deve estar em constante ascese. se toda a inteligência é boa, e quem não usa da inteligência não aprende, segue-se que todo aquele que aprende procede bem. Com efeito, todo aquele que aprende usa da inteligência e todo aquele que usa da inteligência procede bem. Assim, procurar o autor de nossa instrução, sem dúvida, é procurar o autor de nossas boas ações
(Ibidem, pg. 27).
A necessidade de abordagem das supracitadas correntes temáticas ocorre pelo fato da liberdade humana, como também a vontade, utilizando-se do livre-arbítrio, ser uma categoria da ética. A vontade que pouco embasamento possuiu na eticidade platônica. Portanto, requer uma análise a respeito da historicidade da problemática levantada: o aparecimento e desenvolvimento da discussão a respeito da ética, afim de que se compreenda como se deu dentro das estruturas de pensamento platônicas, para se chegar ao entendimento do conceito de vontade na perspectiva ética agostiniana. Sendo assim, a análise presente toma as correntes filosóficas com seus determinados representantes supracitados obedecendo à cronologia dos pensadores. O “Grande Doutor” procura, em sua obra intitulada “De Libero Arbítrio”, discutir
acerca de temas como: a liberdade humana e o mal. Sendo que, acaba por gerar um tratado sobre a ética cristã. Nesta obra, Agostinho procura, primeiramente, saber em que contexto a palavra “mal” é utilizada, o que designa para que, posteriormente, possa-se discutir sobre a possibilidade, ou não, de existência do mal. Segundo o Bispo de Hipona, o mal revela-se como uma ação que é praticada e/ou sofrida. Certamente, pois o mal não poderia ser cometido sem ter algum autor. Mas caso me perguntes quem seja o autor, não o poderia dizer. Com efeito, não existe um único e só um autor. Pois cada pessoa que ao cometê-lo é o autor de sua má ação. Se duvidas, reflete no que já dissemos acima: as más ações são punidas pela justiça de Deus. Ora, elas não seriam punidas em justiça, se não praticadas de modo voluntário (AGOSTINHO, 1995, pg. 25).
Neste ponto percebe-se onde se diverge o pensamento agostiniano da gnose maniquéia, enquanto esta visava que mal e o bem seriam entidades ontológicas e que o ser humano não teria responsabilidade por seus atos, pois estes seriam por determinação de tais entidade; sendo que o bem relaciona-se com a parte imaterial e o mal com a matéria. Já Agostinho vem divergir desta teoria na medida em que mostra que o mal, enquanto entidade ontológica não existe, mas sim é uma escolha individual que está em desacordo com uma ordem universal; sendo que para prática desta lei, não requer somente a capacidade intelectual do sujeito, mas também faz-se necessária a categoria de vontade. O ser humano é ser de ação, ser de escolhas, cabe a ele saber agir de modo consciente. Como supracitado, Deus não é o autor do mal, nem tampouco, há um único autor para determinada ação; pois cada pessoa, que utiliza-se do seu livre-arbítrio, enquanto sendo responsável pela sua própria ação, pode optar pala escolha de boas ou más ações. Tal ação, para que o ser humano seja responsável pela mesma, deve ser realizada de forma autônoma e voluntária: livre de inclinações; que é o contrário das más ações, pois, estas são determinações, limitações do sujeito. Sendo assim, veremos que seria errôneo das demais pessoas fazerem julgamentos de um determinado ato, pois seria parcial, limitado. Somente Deus, em sua justiça, conhece os verdadeiros interesses, as motivações do sujeito, nem mesmo o próprio sabe ao certo quais foram suas verdadeiras inclinações que o incentivaram a realizar tal ato. Conforme Agostinho, (...) muitas ações que aos homens pareciam reprováveis, na realidade são aprovadas por ti, enquanto outras que os homens elogiam, tu as condenas. De fato, sucede muitas vezes que a aparência de um ato não corresponde à intenção de quem o pratica ou às circunstâncias desconhecidas no momento (AGOSTINHO, 1984, pg. 77).
A primeira ação do ser humano é, enquanto ser livre, a “busca pela verdade” (AGOSTINHO, 1995, pg. 28): a busca pelo autor das boas ações. Sendo que enquanto o Homem não se decide por esta busca, o mesmo continua aprisionado à limitação dos objetos sensíveis, desta forma, não podendo chegar à uma ascese do conhecimento.  Com essa breve explanação, o Bispo de Hipona irá buscar compreender a origem do mal. Importante ressaltar que, sempre quando Agostinho trata sobre o mal, toma como referencial uma ação. O conceito de maldade e/ou bondade não pode ser derivado de julgamentos humanos, porque, de acordo com que foi supracitado, somente Deus conhece o ser humano plenamente e sabe de nossas inclinações: o julgamento do ser humano é movido pela paixão. O agir mal está ligado quando o sujeito faz com que a paixão domine a razão, desta forma, o Homem não será livre na escolha de tal ação. O realizador do ato não identifica-se, não se vê em sua ação, pois age de forma involuntariamente ordenada. Evódio, desta forma, nos transmite com clareza este pensamento: “As ações más unicamente são más por casa da paixão que são praticadas, isto é, por desejo culpável” (AGOSTINHO, 1995, pg. 34).
Tendo em vista que as paixões limitam e controlam a vontade do ser humano, pois impossibilita o encontro com a verdade: a primeira busca. Limitando-se, somente, ao plano dos objetos materiais, que são imperfeitos e mutáveis; sendo assim, não nos garantem a certeza. Com isso, vemos que a concupiscência e o medo estão diretamente ligados a estes objetos materiais, detendo-se apenas nestes, quando o verdadeiro objetivo deve ser a busca pela verdade. Mas quando o Homem age de forma imediatista, visando apenas o prazer momentâneo, permite que a paixão domine sobre a razão: ato de desumanizar-se, negação da Santo Agostinho trata a respeito da lei da consciência, mas tal le só pode ser validada quando o sujeito humano está livre das inclinações ocasionadas pelas paixões, caso contrário, tal lei não terá relevância em seu existir. Somente livres que possuímos plena consciência de nossas ações: “lei da consciência: “não fazer aos outros o que não queremos que os outros nos façam”.” (AGOSTINHO, 1984, pg. 40) própria humanidade.
 Desta forma, passa a ser distinguido dos homens bons, como diz Agostinho: (...) os bons o desejam renunciando ao amor daquelas coisas que não se podem possuir sem perigo de perdê-las. Os maus, ao contrário, desejam uma vida sem temor, para gozar plena e seguramente de tais coisas, e para isso esforçam-se de qualquer modo para afastar todos os obstáculos que o impeçam. Levam então uma vida criminosa e perversa – vida que deveria antes ser chamada de morte (Ibidem) A única forma de nos libertarmos deste aprisionamento é pela sabedoria, pois visa o que está além dos objetos materiais: a verdade; por isso que ela liberta, liberta de todas as paixões, inclinações, afim de que se possa chegar plenamente à liberdade. A espécie humana é mutável e sujeita ao fluxo do tempo: “(...) na lei temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei eterna” (AGOSTINHO, 1995, pg. 41). Sendo assim, também se tornam mutáveis suas leis, paixões, pensamentos; ambos agem de acordo com a necessidade vigente, de acordo com as circunstâncias do tempo. Sendo assim, devemos buscar uma “razão suprema de tudo” (AGOSTINHO, 1995, pg. 41), de onde se derivam as leis humanas.
Tal razão ordena todas as coisas a fim de que tudo sirva para a compreensão do ser humano. O exercício da boa vontade implica na vivência das quatro virtudes  cardeais, no caso: prudência, fortaleza, temperança e justiça. Sendo que no bispo de Hipona tais virtudes também são acompanhadas das teologais, a saber: fé, esperança e amor; sobretudo o amor. O homem virtuoso deve ser aquele que ama as coisas que devem ser amadas, não os que se atentam aos vícios e à concupiscência desencadeada pela matéria. Segundo Agostinho: (...) se o amor daquelas realidades o tornava inconstante, fortificar-se-á por esse amor ao Ser que sempre é. E caso se desesperar amando coisas passageiras, firmarse-á amando o Ser que é permanente. Fixar-se-á e obterá aquele mesmo Ser que desejava quando temia deixar de existir e não podia se fixar, arrastado pelo amor das coisas fugazes. (AGOSTINHO, 1995, pg. 173)
O verdadeiro amor não se encontra nas coisas sensíveis e mutáveis, mas encontra-se na eternidade, lugar também onde o ser humano é livre. Pois a matéria por seu aspecto corruptível gera paixões no ser humano, o condicionando para as paixões e o não prevalecimento de sua vontade. A vontade sofre dependência do conhecimento, como já fora dito, como também só se pode amar o que se conhece. Portanto, este conhecimento não deve  O termo “virtude” na linguagem latina ganha uma outra conotação, pois no grego, ela era a “areté”, elemento natural constituído no homem, já na linguagem latina, tal palavra designa de “virtus” que, por sua vez, possui raiz na palavra “vir”, que significa homem. Destarte, a virtude aqui empregada terá uma significância de força, atitude própria do humano, pois é o único ser que faz uso da razão. Permanecer somente no campo da “doxa” – como já falou Platão – mas sim, no plano do entendimento epistemológico, um conhecimento verdadeiro e seguro, a fim de que o ser humano possa da mesma forma que conhece, amar e querer algo que seja universal. Caso contrário, ocorreria a alienação do querer humano, condicionado pelas coisas materiais, conforme Gilson:  

De fato, o amor do homem jamais repousa; o que produz pode ser bom ou mau, mas sempre produz algo. Crimes, adultérios, homicídios, luxúrias, é o amor que causa tudo isso, bem como os atos de caridade pura e heroísmo. Tanto no bem como no mal sua fecundidade, e é, para o homem que ele conduz, uma fonte inesgotável de movimento (...) O problema necessário se coloca não é, portanto, saber se é necessário amar, mas o que é necessário amar (GILSON, 2006, pg. 258).

A vontade, desta forma, caracteriza-se como conditio sine qua non do pensamento ético agostiniano, contudo, não é algo que está fora do indivíduo, tendo em vista que ele a encontra no conhecimento de seu Ser, ou melhor, a vontade é algo íntimo ao sujeito da ação. Por meio do contato com o divino e Sua vontade, o homem livre percebe e conjuga o seu querer particular com uma vontade universal, o ser humano não nega a sua, mas faz sua a vontade de Deus. A razão ética da vontade encontra-se no ato racional do indivíduo compreender e aceitar que tal agir é o que deve ser feito. Conforme Bento XVI: A história de amor entre Deus e o ser humano consiste, precisamente, no fato de que essa comunhão de vontade cresce em comunhão de pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser, para mim, uma vontade estranha que me impõe de fora os mandamentos, mas é a minha própria vontade, baseada na experiência de que realmente Deus é mais íntimo a mim mesmo de quanto o seja eu próprio. (BENTO XVI, 2006, pg. 32).
Por meio de assimilação de vontade (homem - Deus) é que o ser humano encontra a verdadeira paz, pois o mesmo encontra a “ordo amoris”, ou seja, o fim último desejado pelo homem depende de seu reto agir, que ocorre por meio de sua consciência moral. Onde depende do ser humano, mas não única e exclusivamente, pois o homem é dependente da ação
salvífica de Deus que ocorre por meio da Graça; a fim de que o homem auxilie o homem decaído pelo pecado a se configurar plenamente com o Ser-Uno, ou seja, o Sumo Bem. Logo, não te entristeças, mas ao contrário te alegres e muito, pelo fato de que prefiras existir, mesmo infeliz, deixar de ser infeliz, por não mais existires. Com efeito, se a partir desse "querer-ser" inicial cresces, mais e mais, no amor ao ser, elevarás o templo de tua alma em direção ao Ser supremo. Assim, tu te preservarás de toda queda, pela qual passam à não existência os seres inferiores, os quais existem apenas para voltar ao nada, levando em sua ruína as forças e o ser de quem ama tais coisas. (AGOSTINHO, 1995, pg. 173)


CONCLUSÃO

A Vontade é elemento essencial para a compreensão da ética, de acordo com Agostinho uma “livre determinação” (AGOSTINHO, 1984, pg. 173) do sujeito. Destarte, com a referida categoria, Agostinho vem postar que o agir ético do homem reside em sua intenção perante o objeto ou fato. Os objetos criados são bons, tendo em vista que em sua essência trazem este aspecto, contudo, a noção de efemeridade permanece nele, pois ele é material, ou seja, relação do ser no não-ser. Em suma, os objetos em si devem contribuir para a ascese do Indivíduo para o seu fim último. O que vem gerar os juízos de valores, ou seja, se algo (ação ou objeto) é boa ou ruim dirige-se ao enlace das intenção que o ser humano possui diante de tal, melhor dizendo, depende de sua vontade. Caso seja uma má vontade, passa a amar as coisas efêmeras, tal amor que gera os vícios e paixões, pois estas não trazem uma verdade universalmente válida; portanto, anula-se o aspecto da liberdade do ser humano. Já a boa vontade é quando a pessoa passa a “amar o que deve ser amado”; nesta instância o amor é visto em seu ápice, pois aqui o ser humano aparece livre, livre do aprisionamento material e, portanto, é capaz de determinar livremente o seu querer associando-o a um querer universal, não ocorrendo aqui uma anulação, mas uma concatenação.
 Desta forma, fazendo-se necessária a abordagem do conhecimento e da  vontade, em suma o homem deve saber e ter consciência diante de tal possibilidade de ação. Tal processo é o de assimilação, em que o ser humano converge para suas origens enquanto humano – “imago Dei” – para sua essência, no caso Deus, visando um “Telos”. Desta forma, esta temática até hoje se mostra atual em nossa sociedade, pois diante de tanta miséria e desolação da sociedade onde o homem corrompe e se “apropria” do outro. Em busca de vanglórias o ser humano desvia-se de seu verdadeiro caminho, pois busca satisfazer-se apenas a si próprio, deixando de lado a sociedade em que está inserido. O homem é ser de ação e deve possuir consciência de seus atos, portanto se possui esta categoria então há a responsabilidade perante tais fatos, não direcioná-los a esferas metafísicas (o que seria muito adequado às esferas humanas, pois acusaria uma não responsabilidade).
Somente por meio da conversão autêntica que o humano pode voltar-se ao Ser, este UNO, eterno e imutável, não sujeitando-se, porém, à pluralidade da matéria. Por meio desta conversão que o ser humano pode assimilar-se a Deus, assimilação esta que é necessária desde a “queda” gerada pelo pecado por causa da má vontade humana. Tal processo de assimilação vem caracterizar não somente uma categoria do humano em sua pluralidade, mas
a ação desta pluralidade na Unidade em Deus. Tal processo do ser humano deve acontecer por meio do amor, ou seja, deve “estar” no amor, sendo assim, enquanto humano que sabe que ama e o que ama, busca o bem comum para todos da “pólis”, um bem comum que se concretiza na “felicidade”, ou seja, o perfeito ordenamento das coisas. Em suma, o humano quer o que deve querer e amar o que deve ser amado, desta forma o homem deve transcender, em função de chegar ao reto agir.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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